Uma senhora com queixas de fraqueza e falta de ar ocasional

dezembro 21, 2019
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Por José Carlos Campos Velho:

“Sobreutilização de recursos diagnósticos e terapêuticos: um complexo problema de saúde pública e, definitivamente, dos bons profissionais também.”

Quem dera o problema dos exames em excesso fosse apenas de maus médicos. Seria muito mais fácil de resolver…

(Este caso clínico tem um formato um pouco diverso dos casos publicados anteriormente. Ele nos foi enviado por um membro da Campanha Choosing Wisely Brasil, que optou por manter-se anônimo. Com ele reafirmamos a estreita colaboração entre a Campanha Choosing Wisely e o Movimento Slow Medicine no Brasil. Juntos, caminhando lado a lado, procuramos divulgar os preceitos para uma medicina Sóbria, Respeitosa e Justa, onde as escolhas sejam sensatas e sábias, e o compartilhamento das decisões com pacientes e familiares, mais do que a excessão, torne-se a regra.)

Dias atrás, familiar de integrante da Choosing Wisely Brasil (CWB) foi hospitalizada para investigação diagnóstica. A história vai aqui contada, sendo apenas os dados de identificação fictícios. Adiante dela, estimula-se debate.

Paula é uma paciente feminina, branca, de 70 anos, moradora de São José dos Pinhais/PR, com história pregressa de hipotireoidismo, dislipidemia e Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAHOS), essa última condição pela qual faz uso de suporte ventilatório não-invasivo com BIPAP , portando polissonografia com alterações bastante importantes, não tendo sido reavaliada após início da terapia.

Vinha apresentando uma série de sintomas e sinais inespecíficos. Os que mais chamavam atenção eram fadiga e dores musculares. Nos últimos meses, fadiga (e eventualmente dispnéia) estavam piores. Sintomas têm relação com esforço, mas eventualmente manifestam-se no repouso. Não apresenta angina, embora poderia se pensar em  um equivalente isquêmico. Há uma mancha infra-mamária hipopigmentada unilateral.

Medicações em uso até a hospitalização:

– Levotiroxina 50mcg;

– Fluoxetina (iniciada há alguns anos por “momentos de tristeza”, sem que a paciente tenha percebido mudança nestes sintomas com a introdução do antidepressivo);

– Atorvastatina 20mg;

– Hidroclorotiazida 25mg (não tendo diagnóstico de hipertensão arterial – início por recente episódio de “inchaço”);

– Vitamina D (iniciada com dosagem normal, mas osteopenia em densitometria);

– Ômega 3;

– Antivaricoso diosmina e hesperidina  (iniciado para “prevenção de problemas circulatórios”).

Um médico generalista de sua cidade de origem, a partir da observação de  Fator Reumatóide (FR) positivo e Tomografia de Tórax com áreas de vidro fosco nos segmentos basais posteriores dos lobos inferiores, entre outros achados inespecíficos, fez diagnóstico presuntivo de Artrite Reumatóide sem manifestações articulares. Indicou tratamento com a droga Rituximab.

A paciente foi então hospitalizada em Curitiba, PR, atitute estimulada por integrante da CWB, para elucidação diagnóstica, mais especificamente, para procurar um diagnóstico mais preciso, evitando o que parecia um diagnóstico e um tratamento apressados.

O exame laboratorial com alteração dos níveis do Fator Reumatóide da paciente era  conhecido há décadas. As áreas de vidro fosco já eram observadas na tomografia de tórax desde 2012, havendo inúmeros exames anteriores que não demonstravam comportamento evolutivo. Sua espirometria simples era normal.

A seguir, relatamos os principais exames da paciente até a hospitalização, a maioria nos últimos 2 anos, já na presença de sintomas – a fadiga e eventual dispnéia pioraram nos últimos meses. Não há nenhuma piora dos sintomas que seja posterior aos exames. A “mancha” não era conhecida dos médicos, mas já podia ser observada nos exames prévios.

– Polissonografia de 11/2017 com Índice de Apneia e Hipopneia 85/h, 22% do tempo com saturação

abaixo de 90% e fragmentação acentuada do sono;

– Quase uma dezena de radiografias’s de tórax normais;

– 5 Tomografias de tórax, desde 2012, sendo uma delas bastante recente;

– Angiotomografia de tórax de 05/2019 sem tromboembolismo venoso, apenas com os mesmos achados de vidro fosco;

– Espirometria simples normal de 2019;

– Holter sem achados significativos de 2019;

– Cintilografia Miocárdica de 2019 sem isquemia;

– Tomografia de coronárias de 2019 com ausência de lesões em coronárias;

– 3 Ecocardiografias, uma delas com descrição de padrão de relaxamento alterado, sugerindo disfunção diastólica de ventrículo esquerdo;

– Endoscopia Digestiva Alta e Colonoscopia recentes, sem particularidades;

– Exames de sangue,  com avaliação bastante recente de todos eles (anteriores à algumas semana à internação hospitalar, sem que houvesse nenhuma mudança no quadro clínico que motivasse uma hospitalização):

*Quase uma dezena de hemogramas normais, no que tange às séries vermelha, branca e plaquetas;

*Eletrólitos normais;

*Provas de função tireoidianas normais (2 delas em 2019);

*Avaliação renal com creatinina, sedimento urinário  e ultrassonografia normais;

*Creatinofosfoquinase – várias dosagens normais;

*Velocidade de Hemossedimentação- alguns normais, outros levemente alterados; exames sucessivos de proteína C reativa normais;

*Fator Reumatóide e Fator Antinuclear alterados (conhecidos de longa data);

*Outras provas de atividade reumática em padrões normais (Auto Anticorpos Anti RNP negativo, Anti-SSA negativo, Auto Anticorpos Anti SSB/LA negativo, Auto Anticorpos Anti SCL 70 não reagente, Anticorpos Anticentrômero não reagente, Anticorpos Anti Citrulina negativo).

Havia outra situação clínica, ativa e não limitante, não relacionada com a hospitalização e com plano de tratamento conservador não cirúrgico pré-definido: fratura de fíbula por trauma, há alguns meses, não consolidada ( RX bastante recente, o plano terapêutico foi mantido).

A paciente foi admitida sob os cuidados de pneumologista e reumatologista de total confiança do colega da CWB. A sugestão de que não fossem repetidos hemograma, plaquetas, eletrólitos, TSH, CPK, FAN e FR não foi atendida. O argumento foi “registrar da nossa instituição”. Os resultados dos testes vieram sobreponíveis aos anteriores.

Novos RX e tomografia de tórax foram solicitados. A justificativa foi que poderiam ter surgido alterações e que os radiologistas da instituição eram mais confiáveis, apesar do quadro clínico não ter se modificado desde as últimas avaliações, e apesar de imagens anteriores estarem disponíveis em filme e CD, respectivamente, e da instituição dispor de uma consultoria radiológica que oferece laudo para imagens feitas em outros serviços, desde que tivessem boa qualidade. Os resultados das novas imagens vieram sobreponíveis aos anteriores.

O colega da CWB aproveitou a hospitalização para solicitar uma reavaliação da Ortopedia. O clínico assistente principal optou por adiantar um RX da perna. Como não foi informada história de trauma, o radiologista interrogou fratura patológica e sugeriu ressonância magnética. No meio tempo, o ortopedista, dispondo do RX apenas, corroborou conduta conservadora previamente definida. A RNM acabou sendo feita, sem modificar a conduta.

No contexto adicional de função pulmonar completa normal, o pneumologista afastou manifestação pulmonar de doença sistêmica e com comportamento evolutivo. No contexto adicional de exame físico reumatológico completo, provas inflamatórios inespecíficas normais e outros anticorpos não reagentes, o reumatologista afastou critérios para diagnósticos próprios da especialidade, contraindicando veementemente o tratamento com Rituximab.

A alta se deu com alguns testes reumatológicos ainda pendentes, como ANCA, mas  o especialista disse que não precisava deles para afirmar a sua posição.

No seguimento breve da hospitalização, especialista em sono avaliou o caso. Lendo o chip do CPAP, percebeu que, quando usado, a paciente praticamente não fazia mais apneias. Mas que não costumava fazer uso do dispositivo. Fez diagnóstico ainda de obstrução nasal por rinite alérgica.

A impressão final foi de um quadro multifatorial, com SAHOS não adequadamente tratada, obstrução nasal não diagnosticada previamente, obesidade, sedentarismo/descondicionamento, insuficiência cardíaca diastólica, quiçá  efeitos colaterais da utilização de estatina, temporariamente suspensa, com perfil metabólico bastante satisfatório.

O caso traz vários elementos para discussão. Recentemente, 130 pessoas responderam a esquete da CWB. Mais de um terço afirmou que, no seu(s) hospital(ais), percebem o hábito de repetir exames na admissão pelo simples fato de terem sido realizados em outra instituição. Será a repetição com poucos critérios uma prática que faz sentido, não sendo exceção bem justificada?

O paciente não espera de nós, profissionais da saúde, que compreendamos que ele é o mesmo que já fez a punção ou submeteu-se à radiação?

Faz sentido solicitação de RX quando solicita-se concomitante tomografia de tórax?

Devemos solicitar testes se consideramos não irão mudar conduta a partir de seus resultados? Não deveríamos fazer sempre o exercício da probabilidade pré-teste e refletir muito mais para solicitações quando  esta probabilidade for baixa?

Não devemos aprender a trabalhar melhor em rede? E, na dinâmica das próprias equipes envolvidas no cuidado hospitalar, com comunicação mais efetiva e, quem sabe, mais e melhor conversas e menos exames?

Não seríamos capazes de ajudar mais nossos pacientes, o sistema de saúde brasileiro e o próprio país, pelo custo que tais investigações potencialmente inúteis tem ao serem realizadas?

Em um estudo recentemente publicado no JAMA , observou-se que 20-25% do gasto total com saúde nos EUA decorre de desperdícios. Algo em torno de 760 bilhões de dólares por ano. Reconhecem não possuir soluções baseadas em evidências de boa qualidade para responder a todo desperdício existente, mas que as teriam para uma economia em torno $200 bilhões – mais do que atualmente eles investem através dos Ministérios da Educação e Energia juntos.

O caso reforça ainda que há valor da segunda opinião em situações onde diagnósticos carregam prognóstico bastante pior que diferenciais possíveis, e que o especialista focal, quando bem utilizado, pode reduzir falsos diagnósticos, sobrediagnósticos e tratamentos desnecessários.Nos sistemas de saúde, utilizados no varejo, os especialistas focais costumam determinar o contrário, uma utilização maior de recursos (novamente a questão de probabilidade pré-intervenção).

O convênio da paciente informou na admissão que alguns exames não são cobertos. Um deles era o BNP , peptídeo natriurético atrial, sabidamente útil na avaliação inicial de quadros de dispnéia, para o diagnóstico diferencial de insuficiência cardíaca. Posteriormente o convênio não exerceu mais nenhum controle. Faz algum sentido a escolha de exames específicos como “culpados”, ignorando que possuem indicações válidas, ou os convênios deveriam passar a discutir valor de uma forma mais profissional, trazendo para a complexa equação variáveis como condição clínica específica, probabilidade pré-teste e, principalmente, redundância?

A paciente adorou o pneumologista e retornará ambulatorialmemte com ele, com apoio do colega da CWB. Muitas vezes quem pede ou repete exames desnecessários é um excelente profissional! Nem retaliações, nem restrições pouco criteriosas trarão qualquer melhoria, nem para para pacientes, nem para o sistema de saúde.

___________________

Comentários:

Ana Lucia Coradazzi, pela Slow Medicine Brasil:

Quando nos deparamos com casos assim, em que o volume assustador de exames realizados chega a obstruir a visão do paciente por trás deles (de que paciente estamos mesmo falando?), é impossível não lembrar da frase de João Lobo Antunes, em seu livro A Nova Medicina: “Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a nova medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre…”. Não se trata apenas do custo financeiro desnecessário, que é inegável, e nem mesmo dos custos ao paciente, que sofre desnecessariamente para realizar exames inúteis. A questão é que estamos falando de uma medicina PIOR. Ao desvalorizarmos a história médica bem feita, o exame físico minucioso e a contextualização do paciente (incluindo os tantos exames prévios que o mesmo pode trazer em sua bagagem de vida), estamos postergando a definição de um diagnóstico correto, aumentando os riscos ao paciente e possivelmente criando doenças que ele não apresenta ou cujo diagnóstico não modificará em nada sua evolução clínica. E, não nos deixemos iludir: se o paciente tivesse condições de compreender com alguma clareza os riscos aos quais foi exposto em nome de benefícios altamente questionáveis, é pouquíssimo provável que considerasse seus médicos tão capacitados e bem intencionados assim. Quando a face humana da medicina desaparece, a própria medicina desaparece com ela, passando a ser apenas um algoritmo para solicitação de exames e prescrição de medicamentos compatíveis com os resultados obtidos. Quem quer?

Luis Correia, pela Choosing Wisely Brasil:

Precisamos nos questionar qual o processo cognitivo que gera a irracionalidade da sobreutilização de métodos diagnósticos neste caso. Poderíamos falar em “action bias” ou “mentalidade do médico ativo”, mas estes termos retratam o que foi feito (ação) mas ainda não explicam o porquê. Poderíamos falar em conflito de interesses, o que muitas vezes permeia essas transações. Mas o fenômeno também ocorre na ausência de qualquer remuneração adicional que incentive o overuse, como no serviço público. Portanto, pensar “o que” foi feito de inadequado ou “como” foi conduzido o caso não resolve essa questão. Precisamos evoluir para “o porquê”.

O porquê está em nossa teimosa procura do diagnóstico “certo”, mediado pele viés de “aversão à incerteza”. Não nos conformamos com a ideia de que pode ser uma disfunção diastólica comum nesta idade, complicado um pouco pela apneia obstrutiva do sono. Pensamos que somos Sherlock Homes a procura de uma descoberta perfeita que “soluciona o caso”. Não é bem assim. Depois de alguns exames iniciais de resultado inespecífico, devemos nos contentar como conhecimento imperfeito que adquirimos desde caso e evoluirmos para um pensamento baseado em incerteza e probabilidade. Assim, escolhemos o melhor caminho, sabendo que melhor não é o mesmo que certo. Aliás, o certo mesmo só saberemos depois. Esse “depois” remete à Slow Medicine.
Falamos em “menos é mais”. Mas tem outro conceito tão importante quanto: “depois é melhor”. Escolher um caminho, probabilístico e incerto que seja, e esperar que o tempo nos faça sentir se esse é o melhor caminho, pode ser uma melhor solução. O excesso de exames é mediado pela ilusão que um deles nos trará o Santo Gral da decisão certa.

 

 

 

 

 

 

1 comentário

  1. Boa noite!

    Gostei demais do relato de caso e fui ficando horrorizada com a quantidade enorme de exames solicitada.
    As doutoras que comentaram ao caso o fizeram muito bem.

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