A dissonância entre Slow Medicine e a formação com pressa

julho 25, 2023
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Por Victor Gouveia Ferreira de Aguiar

Esse mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente”

– Albert Camus, O Mito de Sísifo, p.139

Devido a crescente automatização, impessoalidade, e mercantilização da medicina, iniciativas como o Choosing Wisely e a Slow Medicine ganharam destaque no meio acadêmico entre profissionais orientados e conscientes da sua responsabilidade enquanto médicos. Entretanto, apesar de necessária para desempenho ético e moral da medicina, o exercício da “consciência” e da “humanidade” se restringe a uma minoria ínfima dos profissionais, reflexo da péssima formação acadêmica dada aos estudantes de medicina. Afinal, é possível almejar ou sonhar com uma medicina sem pressa quando o processo de graduação e formação de médicos é intrinsecamente ligado a pressa e a instantaneidade de resultados?

Segundo o relatório “Demografia Médica no Brasil” publicado através de uma parceria entre a Associação Médica Brasileira (AMB) e Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em janeiro de 2023, aproximadamente 562.206 médicos estavam registrados no Brasil, o que representa mais que o dobro de profissionais registrados no ano de 2000 (219.896).¹ O crescimento acelerado da população de médicos é decorrente da ampliação de vagas após a aprovação da Lei nº 12.871 e a implementação do Programa Mais Médicos que foi exitoso na democratização do acesso à graduação de medicina através de programas como FIES e ProUNI, do fortalecimento da Atenção Primária e da Urgência e Emergência e da exitosa campanha de interiorização da medicina que diminuiu e por vezes sanou a carência de médicos nas regiões mais remotas do país

            Apesar dos inegáveis benefícios do programa, a possibilidade de aumento na quantidade de vagas para graduação transformou o ensino médico em um modelo de negócio multibilionário. Em duas décadas, enquanto as vagas anuais em universidades públicas passaram de 5.917 para 9.725 (aumento de 64%), as vagas em escolas médicas particulares foram de 7.001 para 32.080 (aumento de 358%), estando nas mãos de um oligopólio onde apenas quatro grupos empresariais de educação concentravam 90% das vagas.¹ A desproporcionalidade na abertura de vagas entre instituições públicas e privadas criou um modelo de negócio que perpetuou e aprofundou a elitização da medicina no Brasil. Segundo levantamentos, o valor médio da mensalidade cobrada por escolas médicas privadas ativas em 2022 era de R$ 9.044,92, valor 5,5 vezes maior que a renda familiar per capita do Brasil divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).³

Em um cenário econômico onde houve o aumento dos juros e da inflação⁴ concomitante com a inalteração do valor da bolsa-permanência⁵ durante os últimos 10 anos e a redução orçamentária de 35% do FIES no ano de 2022, a concorrência por vaga em instituições de ensino privado despencou, facilitando o acesso daqueles que dispunham de condições financeiras para cursar os seis anos de graduação pagando integralmente os valores de matrículas, mensalidades e despesas inerentes à aprendizagem médica. Portanto, entende-se que o processo de aprofundamento da elitização da medicina como resultante do desbalanceamento de políticas públicas e custos que não condizem com a realidade média brasileira, sendo indissociável a relação à futura prática médica dos atuais graduandos e a necessidade de recuperação do valor investido durante a graduação, visto que o ingresso na faculdade de medicina se tornou um investimento financeiro com rápida expectativa de retorno.

A expectativa de retorno financeiro associado a carga de trabalho e requerimentos acadêmicos intrínsecos do estudo da medicina cria um ambiente de exaustão, cinismo e sentimentos de ineficiência nos graduandos. O cenário criado a partir da união desses quatro fatores cria um ambiente propício para instalação de síndrome de burnout, transtorno de ansiedade generalizada, depressão que acabam gerando consequências como mal desempenho acadêmico, uso/abuso de substâncias e até mesmo ideação suicida. A gravidade da situação se torna palpável a partir de estudos realizados nos Estados Unidos que demonstram que o suicídio é a segunda causa de morte entre residentes de medicina e que 10 a cada 100 estudantes de medicina relataram algum episódio de ideação suicida durante a graduação. ⁶

Dentro do alicerce do surgimento de sentimentos relacionados a angústia, o filósofo dinamarquês do século XIX, Soren Kierkegaard, defendia a perspectiva de que “não existe alguém que esteja isento de desespero […] ou que não tenha receio de uma eventualidade exterior ou receio de si próprio” a máxima kierkegaardiana pode ser interpretada à luz do pensamento de Carl Jung, renomado psiquiatra suíço do século XX, que utiliza a citação (erroneamente atribuída a Sêneca) do filósofo estoico grego Cleanthes “O destino (as moiras) conduz àqueles que o querem e arrasta aqueles que não o querem  para defender a perspectiva de que cada ser humano é apresentado a uma série de tarefas e a maneira de enfrentamento destas tarefas é parte fundamental do resultado. Desta forma, ao experenciar um ambiente de sobrecarga de trabalho, impessoalidade e cinismo, é esperado que o estudante de medicina após tornar-se médico propague aquilo com o qual ele está acostumado e, devido à inserção no mercado de trabalho, esteja ávido para desempenhar funções que priorizem a quantidade produtiva gerando cada vez mais casos em que ouvimos relatos de pacientes como “o médico nem olhou para a minha cara”, “o médico nem deixou eu terminar de falar e me entregou a receita de um remédio”, “quando entrei no consultório não tinha cadeira para me sentar e o médico disse que isso era normal, para agilizar a consulta”.

Como na parábola bíblica, não há sentido biológico, acadêmico e/ou filosófico em se plantar joio esperando uma colheita farta de trigo. A Slow Medicine, prática essencial e fundamental para o exercício médico e garantia do direito à saúde de qualidade está cada vez mais ofuscada pelo modelo “fast medicine” aplicado e estimulados pelo atual cenário da educação médica. É impossível esperar uma medicina cada vez mais justa, sóbria, respeitosa e sem pressa enquanto as faculdades de medicina forem, na realidade, uma indústria, um sistema de produção.

Sobre o Autor:

Victor Gouveia Ferreira de Aguiar: Acadêmico de Medicina no Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE). Presidente do grupo de estudos Students and Trainees Advocating for Resource Stewardship – UNIPÊ (STARS-UNIPE). Presidente do grupo de estudos Slow Medicine – UNIPÊ.

REFERÊNCIAS

1. Scheffer, M. et al. Demografia Médica no Brasil 2023. São Paulo, SP: FMUSP,AMB, 2023. 344 p. ISBN: 978-65-00-60986-8

2. Separavich, M. A., & Couto, M. T. (2021). Programa Mais Médicos: revisão crítica da implementação sob a perspectiva do acesso e universalização da atenção à saúde. Ciencia & saude coletiva, 26 (suppl 2), 3435–3446.

3. IBGE. Rendimento domiciliar per capita 2022.

4. Massuda, A., Hone, T., Leles, F. A. G., de Castro, M. C., & Atun, R. (2018). The Brazilian health system at crossroads: progress, crisis and resilience. BMJ Global Health, 3(4), e000829.

5. Silva, P. T. de F. e., & Sampaio, L. M. B. (2022). Políticas de permanência estudantil na educação superior: reflexões de uma revisão da literatura para o contexto brasileiro. Revista de administração pública, 56(5), 603–631.

6 Comentários

  1. Chocante, desesperadora e triste realidade.

  2. E assim se vê colegas, no primeiro semestre, nas disciplinas básicas, perguntando e discutindo sobre tratamentos, procedimentos… Colocando a carroça a frente dos bois, como se o fim último de aprender medicina fosse aprender a tratar uma doença. Os mesmos que se vê desprezo no olhar e na fala por disciplinas “descartáveis”, vegetarem em aulas com tópicos “não-médicos” ou “não-científicos”, apoiarem atitudes abusivas de docentes incentivadores da competição, fugirem ou ignorarem discussões de contexto social, cultural ou político… O curioso é que ao conversar sobre subjetividades do ofício e da sociedade, percebi que alguns até pensam de forma diferente do que agem em realidade. As pessoas querem mudança mas não querem ser agentes dela: hoje em dia, não sabem por que fazem o que fazem. Não há espaço para reflexão da práxis nos cursos de Medicina, infelizmente. Me sinto contemplado pela alusão ao efeito trágico: estar consciente sobre os problemas e, mesmo assim, precisar me submeter ao andar da carruagem sendo, na maioria das vezes, silenciado ou ignorado. Pelo menos existem espaços… Obrigado pela reflexão.

  3. Os cursos,na verdade, são de informações e não de Formações!
    Medicina não é isso!

  4. Fico pensando se essa dinâmica e os valores financeiros envolvidos nas elevadas mensalidades pagas para escolas médicas particulares não estão transformando a formação médica em ilusão.

  5. A maior urgência dos pacientes é por compaixão e atenção – o que é, em última análise, um pedido de tempo e de respeito.
       
    Lembrando: aquilo que precisa ser contestado na medicina moderna raramente é a precisão das observações, mas a restrição do interesse, a tragédia da indiferença e a objetificação do paciente…

  6. Um texto importante que retrata a inversão dos valores do ofício médico atualmente e como isso que observamos hoje nada mais é que um reflexo da formação acadêmica de medicina. 

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