A Medicina High Touch

novembro 12, 2020
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Por Ana Lúcia Coradazzi::

“O toque de alguém, dizia ele, é o verdadeiro lado de cá da pele. Quem não é tocado não se cobre nunca, anda como nu. De ossos à mostra.”

Valter Hugo Mãe

“O que torna o tato único, no que diz respeito aos outros sentidos, é sua mutualidade. Nós podemos ver sem sermos vistos, mas não podemos tocar sem sermos tocados de volta.” Entre todas as ideias que a neurocientista Laura Crucianelli traz em seu ótimo texto , sobre o poder do toque, essa foi a que me sequestrou o coração. Acho que é porque já faz tempo. Faz tempo que nosso toque sagrado de cada dia começou a ficar franzino, debilitado, quase uma poeira no canto da sala. A pandemia, convenhamos, apenas acelerou o processo. A pele do outro vem sendo substituída, há tempos, pelas telas de retina, e achamos normal. Assim como aprendemos a enxergar o mundo através da televisão, e ouvir os outros através do telefone. Normal. Em nossa ingenuidade, nos deixamos envolver pela ideia de que podemos nos adaptar a tudo isso sem prejuízos, extraindo de toda essa tecnologia apenas seus benefícios. Mas o texto da Dra. Laura nos traz de volta à Terra: não dá não. Menos ainda se formos médicos.

Não se trata apenas do calor da pele, sua espessura, as cicatrizes, nem tampouco o tamanho de um fígado ou a consistência de um linfonodo. Esses são dados que talvez, um dia, a tecnologia possa nos fornecer com mais precisão dos que nossos dedos humanos. O toque é tão poderoso não apenas pelo que captamos do outro, mas pelo que percebemos em nós. Eu me lembrei de um senhor que conheci há muitos anos, quando eu ainda estava engatinhando para me tornar oncologista, e que estava hospitalizado para investigar um emagrecimento brutal. Ele vinha perdendo peso há cerca de seis meses, sem nenhum motivo aparente, e mais de 30 quilos já tinham ido embora. Ele estava deitado, com as costelas aparecendo sob os lençóis, a respiração fraca, os olhos fechados. Seus exames já tinham cumprido seu papel: mostravam as metástases no fígado, provavelmente secundárias à enorme lesão que se via no pâncreas. Já tínhamos discutido os possíveis esquemas de quimioterapia, a avaliação nutricional, outros exames necessários, e minha tarefa agora era explicar tudo isso a ele. Ao perceber minha presença, ele abriu os olhos, num sorriso frágil e inconsistente. Conversamos por algum tempo, expliquei sobre os resultados e sobre o tratamento. Ele, entre atencioso e ressabiado, balançava a cabeça, tirava suas dúvidas, concordava. Já quase no final da conversa, toquei seu braço direito, e ele respondeu colocando minhas mãos entre as suas. Minha mão estava entre as dele, mas eu mal podia senti-las. Não havia calor, não havia força, não havia vitalidade por debaixo da sua pele. Um calafrio discreto, quase imperceptível, percorreu meu braço e chegou à minha nuca. Era como se ele já não estivesse ali. Naquele instante, eu tive certeza de que não haveria tratamento que pudesse ajudá-lo. No dia seguinte, e também nos outros dias daquela semana, ele só piorou. Pneumonia, uma trombose na perna direita, depois a função dos rins começou a se deteriorar, e ele nunca chegou a iniciar o tratamento que tínhamos proposto. Faleceu duas semanas depois. Mas eu já sabia, desde aquele toque das suas mãos.

O tato, segundo a Dra. Laura, é o primeiro sentido que desenvolvemos e o último que perdemos em nossa existência. Antes mesmo do nosso primeiro choro após o parto, já fomos tocados pelas mãos de alguém, já percebemos o mundo através da nossa pele. E assim seguimos, dependendo do toque alheio ao sermos cuidados, e oferecendo nosso toque a outros no decorrer da vida, seja ele instrumental (quando nos utilizamos dele para cuidar dos outros, dar um banho, vestir ou administrar uma medicação) ou expressivo (aquele através do qual nos comunicamos e proporcionamos conforto). E, na maioria das vezes, nós médicos prestamos mais atenção no que nosso toque provoca nos outros do que nas sensações que nos são provocadas. Mas o fato é que o tato é uma linguagem própria, assim como nossa língua falada, ou a linguagem de sinais. Ele pode ser aprendido, desenvolvido e lapidado de acordo com as experiências que extraímos dele e, como todas as outras linguagens, permite nossa comunicação. Ao tocarmos nossos pacientes, somos capazes não apenas de identificar sinais de doenças, mas também de compreender mensagens e captar realidades que nossos olhos e ouvidos negligenciaram. Percebemos, na frieza úmida de seus dedos, a intensidade da tensão ou do medo. Assistimos, confortados, ao corpo relaxado de um paciente após pegarmos em suas mãos, aquecendo sua pele com nosso próprio calor. 

Estamos desaprendendo a usar essa linguagem tão delicada, seja por nos acomodarmos por trás das telas de retina, seja pela obrigatoriedade de tantos equipamentos de segurança que mal conseguimos mais nos lembrar onde termina a pele e onde começa a luva. Talvez parte dessa comunicação possa ser substituída por novas técnicas: somos muito bons em encontrar caminhos mais rápidos e mais fáceis, que otimizam nossos sentidos essenciais (nossos microscópios superpoderosos são ótimos exemplos disso). Mas amplificar ou modificar um sentido não nos exime de experimentá-lo, e nosso tato não é exceção, pelo contrário. Podemos lidar bem com o mundo sem vê-lo ou sem ouvi-lo, mas não somos capazes de passar a vida sem tocar em nada ou ninguém. Assim também é a Medicina. Sem o toque, somos menos. Perdemos informações, negligenciamos sinais clínicos, ignoramos sentimentos. Desperdiçamos a oportunidade valiosa que nos é dada após os seis duros anos da faculdade e os outros tantos da residência médica: a autorização para tocá-los num contexto de respeito e confiança, sem restrições sociais, sem o constrangimento que sentimos ao encostar no braço do vizinho no elevador. Eles se despem à nossa frente, muitas vezes de uma forma que não fazem em nenhum outro contexto (nem mesmo entre quatro paredes com seus cônjuges de muitos anos). Eles permitem que toquemos sua pele, suas pálpebras, suas unhas, seus cabelos, seu corpo todo. Permitem que busquemos, compenetrados, as respostas que poderão auxiliá-los, e isso deveria ser uma tremenda honra para nós

Mas talvez a perda mais dolorosa não esteja relacionada ao que não captamos, e sim ao que deixamos de comunicar. O médico infectologista Abraham Verghese, em sua fala inspiradora para o TED Talks, descreve o exame físico como um ritual entre o médico e seu paciente. Ele fala da necessidade dessa aproximação física como algo que vai muito além dos achados clínicos, descrevendo-a como uma catarse para o médico e uma necessidade para o paciente. O toque diz a eles o que a voz nem precisa dizer: que estamos presentes. Que estamos ali por eles, que estaremos juntos haja o que houver, e que nos importamos. E o mesmo toque que fala com eles nos toca de volta, nos impele a mergulhar nos conhecimentos que acumulamos até ali, buscando as pistas, os diagnósticos e as soluções de que precisamos. Enquanto os examinamos, nossos cérebros organizam ideias e formulam hipóteses, nos transportando novamente às salas de aula e trazendo os insights que os livros não contam. E é assim, usando o tato como extensão dos olhos ou do estetoscópio, que o ritual se completa, misturando conhecimento com percepções pessoais, técnica com instinto, sobriedade com proximidade. Slow Medicine. Médicos que tocam seus pacientes têm toda a tecnologia high touch bem ali, na ponta dos dedos das mãos.

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Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou mais 2 livros, escrito em colaboração com os Drs. Ricardo Caponero e Lucas Cantadori: Pancadas na Cabeça e O Médico e o Rio.

5 Comentários

  1. Quem nunca é tocado, chora, grita, eu existo!!!!
    Belíssimo texto Coradazzi, um alerta do quanto precisamos afetar positivamente o outro com nosso toque.
    Parabéns sempre por todos os textos que levam sua assinatura.

    • Obrigada, Vera querida!

  2. Um belo texto.
    Sou psiquiatra…e grande entusiasta do uso das nova tecnologias em saúde. Portanto, a leitura destas reflexões me deixou pensando, e preocupado. Qual seria o equivalente do toque na consulta psiquiátrica? Talvez o olhar? Chego a pensar que sim. Tenho observado isso em minhas consultas (presenciais), onde a máscara nos coloca numa situação em que só os olhos podem se expressar, ou não.
    Outro ponto diz respeito às tecnologias. Há um pesquisador espanhol – José Maria Cepeda – que costuma falar das “tecnologias de aproximação”, destacando esse papel que muitos não levam em conta nem valorizam. Talvez porque não queiram se aproximar de coisa alguma, nem de ninguém…não é mesmo? Nós médicos estaríamos dispostos a aceitar esse desafio, o de usar as tecnologias não no sentido da desumanização e da pressa? Não creio…eu vejo todos optarem pelo caminho mais simples

    • Excelentes questões, Eduardo! Acho que na Psiquiatria o equivalente ao toque talvez seja mesmo o olhar, mas até mais que isso: a linguagem corporal empática, a escuta atenciosa e as palavras cuidadosas. Psiquiatras talvez precisem ser mestres na arte de ler gestos e compreender palavras e olhares. E concordo que muitas vezes não utilizamos a tecnologia como forma de aproximação não porque não a temos disponível para este fim, mas por não querermos mesmo. Se dentro do consultório, onde tudo o que precisamos para nos aproximar são nossos ouvidos e nossas mãos, muitas vezes não o fazemos…

  3. Brilhante.
    Mais uma vez a Dra. Ana Lucia está de parabéns!

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