A pandemia chega à uma pequena cidade do interior

abril 15, 2020
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Por Ana Lucia Coradazzi:
Mário Quintana
A VERSÃO FAST:
HCVT, hospital público localizado numa cidade de 140.000 habitantes, funciona como referência regional para tratamento de doenças complexas, oferecendo à população serviços importantes como Pronto-Socorro de alta complexidade, UTI, Hemonúcleo, entre outros. Assim que foram notificados os primeiros casos da Covid-19 no país, o hospital se mobilizou para definir protocolos de atendimento, estabelecendo rotinas para triagem e isolamento dos casos suspeitos, reservando leitos de enfermaria e de UTI para receber os pacientes, estabelecendo planos de contingência para os profissionais da saúde e providenciando testes para diagnóstico da doença. Quando os primeiros casos da Covid-19 apareceram, o hospital estava preparado, conseguindo oferecer suporte intensivo para todos os que evoluíam para insuficiência respiratória, seguindo critérios clínicos rigorosos baseados no esforço respiratório, saturação de oxigênio e resultados de gasometria arterial. Em poucos dias, porém, com o aumento expressivo do número de casos, o cenário inicialmente favorável transformou-se em caos. Os leitos de UTI rapidamente se esgotaram, assim como os isolamentos na enfermaria. A mortalidade dos pacientes infectados na UTI era superior a 80%, aumentando significativamente a ansiedade dos profissionais da saúde, pacientes e familiares. O Pronto-Socorro não conseguia atender a todos os pacientes sintomáticos, priorizando os de maior gravidade, que passaram a receber suporte intensivo em leitos improvisados lá mesmo. Em pouco tempo, mesmo esses leitos não eram suficientes, e o hospital determinou que não tinha como receber mais pacientes com a doença. Muitos começaram a falecer em ambulâncias ou em suas próprias casas, não conseguindo acesso a qualquer serviço de saúde. A maior parte deles não tinha acesso nem mesmo a medicamentos para alívio da dispneia, visto que as equipes médicas das UBSs estavam também sobrecarregadas.
A VERSÃO SLOW: 
HCVT, hospital público localizado numa cidade de 140.000 habitantes, funciona como referência regional para tratamento de doenças complexas, oferecendo à população serviços importantes como Pronto-Socorro de alta complexidade, UTI, Hemonúcleo, entre outros. Assim que foram notificados os primeiros casos da Covid-19 no país, o hospital se mobilizou para definir protocolos de atendimento, estabelecendo rotinas para triagem e isolamento dos casos suspeitos, reservando leitos de enfermaria e de UTI para receber os pacientes, estabelecendo planos de contingência para os profissionais da saúde e providenciando testes para diagnóstico da doença. Atenta às informações referentes à evolução clínica dos pacientes obtidas de outros países, a administração do hospital incluiu em suas ações a avaliação dos pacientes em caráter individual, buscando definir o contexto em que se encontravam antes de estabelecer a conduta médica a ser adotada. Assim, foram definidos critérios para indicação de suporte intensivo, que permitiam identificar os pacientes que poderiam realmente se beneficiar dele, e oferecendo o suporte da equipe de cuidados paliativos para aqueles cujas medidas intensivas não trariam benefícios (e poderiam ser inclusive maléficas), como pacientes portadores de doenças crônicas graves e irreversíveis. Esses pacientes recebiam assistência integral da equipe, priorizando o alívio de seus sintomas e suporte à família, preferencialmente em casa se isso fosse possível. Em alguns dias, mesmo com o aumento expressivo do número de casos, o hospital conseguia atender à demanda, a mortalidade na UTI era inferior à descrita em vários países, e os pacientes que evoluíam a óbito (na UTI ou fora dela) em geral passavam pelo processo de forma digna, fato que se refletia em suas famílias enlutadas.
FAST VERSUS SLOW:
As duas situações relatadas acima são hipotéticas e, portanto, passíveis de críticas. No entanto, nós as construímos com o intuito de ilustrar, na prática, o impacto que medidas mais sensatas, pautadas pelo bom senso e por dados científicos bem analisados, podem ter sobre o desfecho da pandemia na sociedade como um todo.
Na versão FAST, apesar da adoção das medidas preconizadas para a assistência aos pacientes com Covid-19, a postura “one size fits all”, levando em conta apenas critérios clínicos e laboratoriais, provocou o colapso institucional. Ou seja, oferecer a todos os doentes o mesmo protocolo de tratamento esgotou rapidamente os recursos hospitalares e não foi capaz de salvar mais vidas, pelo contrário, resultou num maior número de pacientes que nem sequer conseguiam acesso ao serviço de saúde.
Na versão SLOW, o uso de princípios importantes como a Individualização, Segurança em primeiro lugar, Compaixão e Uso parcimonioso da tecnologia permitiu utilizar os recursos disponíveis de forma mais inteligente, justa e sensata, oferecendo tratamentos mais proporcionais às expectativas de cada paciente. O princípio da Individualização prevê que o cuidado oferecido seja o mais apropriado para aquele determinado paciente, levando em conta seu contexto de saúde, suas expectativas e seus valores individuais. Sua aplicação evita que pacientes com chances remotas de sobreviver aos cuidados de UTI sejam submetidos a procedimentos agressivos, dolorosos e inúteis. O princípio da Segurança em Primeiro Lugar leva em conta o juramento de Hipócrates, no qual nos comprometemos a não causar o mal a nossos pacientes (o que inclui não submetê-los a tratamentos dolorosos que não lhes tragam benefícios). O princípio da Compaixão busca a humanização do cuidado, compreendendo a evolução de cada paciente em sua sacralidade e aceitando sua morte quando não podemos evitá-la, e priorizando assim o conforto e a dignidade dos pacientes. Por fim, o princípio do Uso Parcimonioso da Tecnologia permite que utilizemos os recursos disponíveis de forma mais inteligente, beneficiando da forma mais efetiva possível o maior número de pacientes possível.
Essas medidas resultam em três desfechos importantes. O primeiro é a redução dadistanásia(prolongamento doloroso do processo de morrer), visto que o suporte intensivo para pacientes com condições de saúde graves e irreversíveis não é capaz de evitar a morte da pessoa, apenas consegue (se tanto) prolongar seu tempo de vida, às custas de grande sofrimento. O segundo é o aumento da ortotanásia (morte natural em seu tempo certo, com alívio do sofrimento e dignidade), que ocorrerá nos casos dos pacientes para os quais o suporte intensivo não será indicado e que usufruirão da assistência da equipe de cuidados paliativos para alívio dos sintomas, culminando com a morte digna. O terceiro (e talvez mais importante num cenário de pandemia) é evitar a mistanásia, na qual pacientes que poderiam se beneficiar do suporte intensivo não o recebem devido ao esgotamento da infraestrutura, evoluindo precocemente para óbito em condição cruel, de abandono e sofrimento.
Como se observa aqui, os princípios da Slow Medicine não se restringem à prática médica. Podem (e devem) ser inseridos nas políticas institucionais, e também nas políticas públicas relacionadas à saúde. Uma Medicina Justa. Oferecer tudo a todos não somente é inviável como pode trazer prejuízos em todas as esferas envolvidas, desde o paciente como indivíduo até a sociedade como um todo.
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Ana Lucia Coradazzi:  Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. . Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila.

**Texto compilado com a colaboração do médico endoscopista (e filósofo!) de Cajuru/SP, Pessanha Junior

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