A presença que podemos ser

julho 30, 2022
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                                                                                     Por Carla Rosane Ouriques Couto:

                                         “Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia. É justiça”.

Dom Quixote. Miguel de Cervantes

Acima de tudo o filme “A ausência que seremos” é uma narrativa de paixão e admiração, de um filho por seu pai. Hoje escritor, como o pai previu, Héctor Joaquin Abad Faciolince (Quiquin) reconstrói no livro homônimo sua infância, sua relação com o pai Héctor Abad Gómez (1921/1987), e sua visão de filho sobre a luta por direitos humanos, uma herança que custou a compreender.

A Colômbia, em especial a cidade de Medellín foi palco de sangrentos embates entre extremistas políticos, terroristas e milicianos nas 3 últimas décadas do século passado. Entre 1984  e 2002 pelo menos 4.153 pessoas ligadas à União Patriótica, frente ampla de esquerda à qual pertencia Hector Abad, foram assassinadas, sequestradas ou desapareceram. Muitos dos crimes permanecem sem solução até hoje. Medellín, conhecida como “cidade da eterna primavera” era um desses tristes campos de batalha, agravado pela desigualdade social histórica da região. Em 2010, a Colômbia era o quinto país mais violento do mundo. Como mostram as primeiras cenas de infância de Quiquin, único filho homem do médico Héctor Abad Gómez, era comum que se brincasse com armas. Da forma que os brasileiros conhecem bem, vivia-se a banalização da violência social. Mas outras memórias se revelam: uma grande família feliz, um pai amoroso e sonhador, uma mãe profissional e racional, cinco filhas, apenas um menino: Quiquin. E quem era Hector Abad além de pai apaixonado?

Héctor Abad foi médico de prática sanitarista, professor de Medicina Preventiva, Fundador da Escola Nacional de Saúde Pública na Universidade de Antioquia. Jornalista e político pelo Partido Liberal Colombiano. Seus artigos e pronunciamentos sobre as condições de vida e saúde de comunidades excluídas e miseráveis da Colômbia, provocavam reações de colegas, professores e diretores de sua universidade. Foi afastado de seu posto como professor algumas vezes, indo buscar trabalho em outros países, sob as ordens da Organização Mundial de Saúde. Atuou em Manila, Filipinas, onde fundou uma Escola de Saúde Pública e em Jacarta, na Indonésia. Foi professor convidado na UCLA em Los Angeles. Na Colômbia lutou pela aquisição das primeiras vacinas contra a Poliomielite, implantou projetos de saúde para prevenção da cólera, inspirou a criação do ano rural obrigatório para médicos recém-formados, implantou a figura das promotoras rurais de saúde, semelhante aos nossos agentes comunitários de saúde. Apesar de não ser o foco principal da narrativa um pouco de tudo isso está representado no filme e vale a pena refletir sobre.

Héctor pai levava o filho a visitar a universidade e as comunidades onde tentava implantar projetos de saúde. O menino ainda não compreendia quando o pai dizia que a “principal doença é a fome”; “água limpa salva mais que os cirurgiões, por que acha que os romanos deram tanta importância aos aquedutos?”; “a desnutrição infantil é o primeiro escalão da desigualdade social”. Falava sempre de sua teoria dos 5 As: “o que as pessoas precisam é de Ar, Água, Alimento, Abrigo e Afeto. “

Tanto nas enfermarias do hospital público, quanto nas comunidades Héctor promovia o “mapeamento” de patologias e óbitos. De onde vinham as crianças internadas com pólio, cólera e desnutrição? Era um cartógrafo por instinto e fé. Fé pouco compreensível para sua família. Casado com a sobrinha de um arcebispo, Héctor tinha em casa a ajuda de Josefa, uma freira, para os cuidados dos filhos menores. Dizia ao filho que fosse a missa, e rezasse a noite, apenas para agradar a mãe e viver em paz. Mas sua fé estava em outro lugar. O filho dizia que não se importava de ir ao inferno, desde que o pai fosse junto, já que este não ia a missa e não comungava com os dogmas católicos. Identificado ora como comunista, ora como marxista, ora como fascista, dizia apenas que “não se desviava do caminho cristão, e se limitava a contar o que via”.

Como professor não renunciava a seus direitos de cidadão e a livre expressão afirmando que “a universidade não pode viver de costas para os problemas reais dos colombianos, alheia as angústias e defendendo privilégios e métodos que sustentam as injustiças sociais”. Durante seus períodos de afastamento de Medellín seguia se comunicando com a família através de gravação de fitas. O filho Quiquin cuidava de suas coisas e interesses em casa, tinha paixão pela máquina de escrever e dormia abraçado ao travesseiro do pai. O menino aprendeu com ele a fazer perguntas indigestas: “e se as pessoas se comportarem bem, sem ir à missa? Vão ao inferno?”

Para o único filho, abria exceções e até o mimava, dizendo que a vida já era por si suficientemente dura para acrescentar mais dureza a ela. O filho não queria ver os bacilos e sim uma pessoa morta. Quiquin vivia entre o mundo real, representado pela mãe e sua visão prática da vida e a visão idealista do pai, que pouco se preocupava com o aspecto material da existência. O pai o fazia ler sobre história da arte e poetas como Machado de Assis e Neruda. O menino chamava a si mesmo de Hector III, pois o pai, para ele, valia por dois.

Héctor Abad lutou pela implantação das vacinas em massa, tendo aplicado a primeira dose contra a pólio no próprio filho, e colocado suas filhas a puxar a fila nas primeiras campanhas contra a poliomielite. Trata-se da mesma luta que sanitaristas, gestores e profissionais de saúde enfrentam hoje, contra o descrédito de parte da população. Após termos erradicado a poliomielite, ela está de novo a ameaçar, entre outras doenças reemergentes e emergentes. Como dizia Héctor: “o importante é a medida das coisas”.

Num período em que vários estudantes da Colômbia aderiram a luta armada, Héctor se dizia apenas “um médico que estudou para salvar vidas, não para colocá-las em perigo”. Para grupos radicais de sua própria universidade era um conservador. Para grupos de direita era um comunista e marxista. Dizia que não estava ali para mudar o mundo, e sim para educar aqueles que podem promover a mudança. Além de nunca ter lido Marx.

Apesar da maioria das cenas familiares da película serem sobre uma verdadeira paixão entre o pai e os filhos, há o momento de extrema dor na doença e morte da filha adolescente Marta, a mais alegre das meninas Abad, vítima de um melanoma. Na visão do filho, este é um marco, em que de certa forma o pai se afasta um pouco da família, passando a olhar mais as necessidades da comunidade. Um mecanismo de defesa talvez, que gera distância e posterior mágoa do filho e da esposa. Nesses momentos Quiquin acusa o pai de “vaidoso”, e de que de nada adiantava sua jornada pessoal contra a desigualdade social. Tudo continuava igual. O pai lhe dizia que para ser escritor seria necessário adentrar a essa realidade e que era importante “em vez de amaldiçoar as trevas, acender, mesmo que seja, só uma pequena luz”. O pai reconhecia os dogmas religiosos e o futebol, como alienantes do povo, em relação ao que era essencial.

Um episódio traumático na vida do filho já adulto, quando atropela uma senhora, por imprudência no trânsito, mostra bem a capacidade do pai de transformar erros em algo benéfico e pedagógico. Quiquin é internado num hospital psiquiátrico para escapar da prisão e após retirado pelo pai, que apoia a família da senhora em seu tratamento, recuperação, reabilitação e projetos futuros.

Após ser aposentado compulsoriamente e estar passando a maior parte de seu tempo como pai e avô, a cultivar rosas, Héctor toma outra decisão. Diante dos assassinatos e desaparecimentos de jovens estudantes: torna-se candidato a prefeito de Medellín pelo partido liberal. Uma decisão que se revela em sua dimensão mais profunda como um aspecto a mais do “ser médico”, considerando saúde como direito fundamental junto à liberdade, justiça, educação, trabalho, alimentação, moradia. Vida, enfim. Perguntado sobre sua tendência política respondia: “tenho a esquerda o coração e sentimentos; ao centro o cérebro para pensar racionalmente; a direita a vesícula biliar que guarda raiva e ódio.”

Durante a campanha, estando numa lista de jurados de morte, é vítima de uma emboscada e assassinado a tiros por matadores de aluguel, em 25 de agosto de 1987.

O que fala a vida (e a morte) de Héctor Abad ao movimento Slow Medicine? De imediato percebe-se que era um médico que vivenciava todos os princípios do que hoje representa uma medicina sóbria, justa e respeitosa. Dedicou o tempo de sua vida a ser um “médico das ruas”. Dizia-se um péssimo cirurgião, e que cada um deve achar o seu lugar no mundo. Seu lugar era próximo a alma e ao chão de cada paciente. Exercitou a empatia, a educação em saúde, a prevenção baseada na ciência, a racionalidade que deve reger todos os sistemas de saúde: primeiro a água, depois a tecnologia. Primeiro o alimento, depois a farmacologia. Primeiro o ar, depois o complexo hospitalar. Ia ao âmago dos determinantes de saúde quando respondia ao filho: “o que essa criança tem é fome!”. Tudo isso é contemplado pelos 10 princípios Slow Medicine: ver o paciente como único em seu contexto também único, considerar o melhor e o mais justo dentro de sua singularidade e compartilhar decisões com base nas melhores informações da ciência.

Segundo estudiosos da vida de Héctor Abad, sua doutrina era o “mesoísmo filosófico”, termo que encontrou para defender o meio-termo e a negociação. Almejava criar um novo ramo da medicina, a Poliatria, voltada ao estudo e prevenção, para além do tratamento, das causas mais profundas das mazelas humanas. Era um pacifista convicto e somente adentrou ao meio político por ser o único caminho visualizado para combater a barbárie em seu país. Sua obra está reunida nos livros Manual de Tolerância, Teoria e Prática da Saúde Pública e Jornalista com licença médica: seleção de artigos; onde estão reunidos todos os artigos publicados na imprensa.  Toda uma obra dedicada aos pilares éticos da medicina, entre os quais estão as políticas públicas.

Sua herança tem sentido mais de 30 anos depois? Certamente, pois os poderes contra os quais lutou seguem prosperando pelo mundo, causando pequenas e grandes tragédias. Seguem as pandemias sem total controle, os movimentos contra as vacinas, os interesses da indústria da doença, do prazer imediato e da estética, a desvalorização e o descrédito da ciência invadida e ameaçada pelas forças do mercado globalizado e da política sem nenhum interesse humano.

Não é imprescindível que cada médico seja um herói, até porque Héctor Abad só era um herói e assim foi retratado, aos olhos do filho. Era um médico íntegro que olhava para os olhos dos pacientes sem deixar de olhar o entorno além. É possível em qualquer situação de cuidado, fazer as conexões entre dor, sofrimento mental, doenças e contexto familiar/social. Ouvir a ciência, procurar as evidências de cada nova informação em saúde, considerar interesses alheios ao paciente, compreender os limites de cada pessoa (como compreendeu que a prótese doada a uma paciente só era usada em casa, porque ser deficiente era um meio de vida para aquela mulher).

Vemos diminuir o número de médicos sanitaristas no Brasil, mas temos visto aumentar em quantidade e qualidade os profissionais da Medicina de Família e Comunidade e aqueles especialistas com foco na integralidade como pediatras, ginecologistas e geriatras. Embora os princípios da vida de Hector Abad, semelhantes aos de grandes sanitaristas brasileiros, revividos pela filosofia Slow Medicine e pelos vários movimentos sob seu “guarda-chuva”, sirvam a todas as especialidades, são essenciais aos que se mantem longitudinais nos cuidados em saúde. A proximidade gera confiança do paciente e aumenta a responsabilidade do profissional, exigindo habilidades de pesquisa contínua, educação em saúde para prevenção e promoção das melhores condições de vida. Um desafio diário, onde podem nos auxiliar as visões da sociologia, antropologia, psicologia social, enfim toda a ciência dita “humana” aplicada a atenção a saúde, salvando vidas nos bastidores dos grandes eventos da medicina e do marketing que promove tratamentos e intervenções sem considerar qualidade de vida.

Nossos dias no Brasil e no mundo, têm sido de conflitos de toda ordem: desinformação, extremismos, radicalismos, intensos processos migratórios, exclusões de minorias, desastres climáticos e pandemias. Envoltos numa distopia, perdemos a medida das coisas. Perdemos a bússola da ética, como políticos, cidadãos e seres humanos.  Como naqueles anos na Colômbia são tempos sombrios. Enquanto médicos e seres humanos temos nossas limitações e com certeza a maioria de nós não chegaria aonde chegou Héctor Abad Gómez em defesa de suas ideias (são “os imprescindíveis que lutam a vida toda”, como diz Brecht). Mas também como médicos, há um chamado para que abandonemos a “neutralidade” e o silêncio, diante de políticas públicas e iniciativas privadas que degeneram a medicina.

Reconhecer sua trajetória e os frutos concretos que ela deixou (como uma espécie de “prótese para recordar” nas palavras do filho), e tentar exercitar um pouco de suas habilidades onde estivermos significa acender pequenas luzes ao redor. Da mesma forma o movimento Slow Medicine pretende e tem sido um caminho iluminador de como “ser e permanecer médico” em meio a escuridão do mercado.

Trata-se de um testemunho necessário como declara o filho: “Este livro é a tentativa de deixar um testemunho dessa dor, um testemunho ao mesmo tempo inútil e necessário. Inútil, porque o tempo não volta atrás, nem os fatos se modificam; mas necessário, pelo menos para mim, porque minha vida e meu ofício perderiam o sentido se eu não escrevesse o que sinto que devo escrever, e que, em quase vinte anos de tentativas, não fui capaz de escrever até agora.” Um testemunho capaz de transformar a dor da ausência na presença que todos podemos ser.

Ao morrer, Héctor trazia no bolso o poema “Epitáfio”, de Jorge Luis Borges:

Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que era o Adão vermelho, e que é agora,
todos os homens, e que não veremos.

Já temos no túmulo as duas datas
do início e do fim. A caixa,
a corrupção obscena e a mortalha,
os triunfos da morte e as endechas.

Não sou o tolo que se apega
ao som mágico de seu nome.
Eu penso com esperança naquele homem

que não saberá que eu estive na terra.
Sob o azul indiferente do Céu
esta meditação é um consolo.

Ficha técnica do filme:

Título original: “El olvido que seremos”.

Título em português: “A AUSÊNCIA QUE SEREMOS” (Netflix).

Direção: Fernando Trueba. Roteiro de David Trueba.   

Protagonista: Jávier Cámara. 2020. Espanha e Colômbia.

“O mero conhecimento não é sabedoria. A sabedoria por si só também não é suficiente. São necessários conhecimento, sabedoria e bondade para ensinar os outros.”

Héctor Abad Gómez.

______________________

CARLA ROSANE OURIQUES COUTO. Médica de Família e Comunidade, Pediatra. Especialista em Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Sempre procurando lembrar que a presença é a essência do cuidado.

Referências:

A AUSÊNCIA QUE SEREMOS. Héctor Abad Faciolince. Companhia das Letras, 1ª edição. São Paulo. 2011.

Manual de Tolerancia. Héctor Abad Gómez. Colección Manila. Ebook Kindle.2018. Angosta Editores.

Teoría y Práctica de La Salud Pública. Editorial Universidad de Antioquia. 1987. Digitalizado em 2008.

Periodista con licencia médica: selección de artículos de prensa. Héctor Abad Gómez, 2016. Ed UNAULA. Ebook.

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