As máscaras e as muitas faces de uma pandemia

abril 11, 2020
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Por Rafael Tomazi:

Em época de pandemia na era digital, informações são difundidas numa velocidade impressionante, e saber o que é certo e o que é errado torna-se um imenso desafio. O medo do novo, a insegurança, as incertezas que pairam sobre o surgimento de uma nova doença globalizada fazem com que condutas e orientações irracionais ganhem espaço, traduzidas em fake news. Mas talvez haja uma armadilha tão perigosa quanto as informações falsas, e que acomete tanto o público leigo quanto os profissionais da saúde: a ilusão terapêutica. Ela pode ser definida como um entusiasmo injustificado por parte dos médicos e pacientes em relação a um tratamento ministrado ou a uma abordagem adotada. Quando as pessoas acreditam que suas ações são mais eficazes do que realmente são, os resultados podem ser cuidados desnecessários e onerosos (1). É o que pode estar acontecendo, por exemplo, com o uso das máscaras.

Não é nossa intenção, nessas poucas linhas, definir o que é o certo e o que é errado, e quais são as recomendações e orientações ideais durante uma pandemia caracterizada mais pela incerteza do que por consensos. O papel do movimento Slow Medicine nunca foi o de ditar regras e definir o caminho a seguir. O objetivo aqui é a reflexão daquilo pelo que todos estamos passando. E para isso é necessária a prática de empatia, se colocando no lugar de vários personagens da nossa sociedade, já que a pandemia não escolhe classes sociais, não escolhe países e seu impacto social, psicológico e econômico será gigantesco. Pensando sob esse prisma, talvez fique mais fácil compreender o porquê de atitudes tão pequenas (como usar ou não uma máscara) precisarem de uma reflexão profunda antes de serem adotadas.

Muito tem se discutido nas últimas semanas sobre o uso das máscaras de forma universal, ou seja, sua utilização seria preconizada para todas as pessoas, sem exceção. Muitos países têm adotado essa estratégia. Um artigo recentemente publicado no The New England Journal of Medicine   discutiu justamente esse contexto, e algumas reflexões importantes foram feitas. O artigo alerta, por exemplo, para a possibilidade de ilusão terapêutica, atribuindo às máscaras um poder protetor que elas, isoladamente, não têm. Seu uso pode dar uma sensação falsa de segurança e, paradoxalmente, levar a mais transmissão da COVID-19 por desviar a atenção de medidas fundamentais de controle de infecções, como a higienização das mãos e o distanciamento social. Por outro lado, o mascaramento universal pode dar aos profissionais de saúde a confiança necessária para implementar essas práticas fundamentais de prevenção, tendo um papel simbólico: as máscaras não seriam apenas ferramentas, elas também seriam como talismãs que poderiam ajudar a aumentar a sensação de segurança dos profissionais de saúde e de serviços essenciais, reduzindo a ansiedade e aumentando o bem estar e a confiança nos seus locais de trabalho (e quem poderia negar que aumentar a sensação de segurança de profissionais de saúde é algo positivo?) Mas o fato é que, do ponto de vista científico, o uso de máscaras de forma generalizada pela população tem pouco respaldo técnico. Fora dos ambientes diretamente ligados ao cuidado dos pacientes, a exposição necessária ao vírus para que ele chegue a contaminar uma pessoa é bastante significativa: é preciso o contato face-a-face com alguém que esteja SINTOMÁTICO para Covid-19, a uma distância de até 2 metros, por pelo menos alguns minutos (10 a 30 minutos, em média). Isso significa que manter o distanciamento social seria mais que suficiente, por si só, para reduzir muito as chances de contágio. O uso das máscaras na rotina diária, portanto, só seria justificável se fôssemos nos expor a situações de risco (como os profissionais de saúde se submetem ao atender pacientes sintomáticos, com os quais precisam manter proximidade inferior a 2 metros e por um tempo considerável). A limpeza frequente das mãos, ao contrário, evitaria que carregássemos o vírus que fica descansando nas diversas superfícies de um lado para o outro (incluindo dar a ele uma carona para nossas próprias vias aéreas). Se a máscara, ainda por cima, causar desconforto a quem a estiver usando, as chances dessa pessoa levar vírus que estão em suas mãos para a face, com o intuito de ajeitar a máscara, são enormes, e olha aí o aumento das chances de contágio apesar da máscara… Como tudo o que envolve situações complexas, o uso das máscaras deve ser visto num contexto, e não como uma medida salvadora isolada.

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É claro que não estaríamos discutindo nada disso num mundo ideal onde tivéssemos máscaras à disposição de todas as pessoas, sem limite de estoque, por tempo indeterminado e sem custo algum. Máscaras não trazem efeitos colaterais como remédios ou procedimentos, e numa situação como essa, provavelmente seria consenso que todos deveriam usá-las (bastaria a orientação obsessiva para seu uso correto). Além disso, nesse mesmo mundo ideal, todos enxergariam as máscaras como parte de uma estratégia maior, na qual outras medidas importantes não seriam menosprezadas (como a lavagem de mãos e o distanciamento). Mas não vivemos num mundo ideal. As pessoas resistem ao isolamento, não dão a devida atenção à higienização frequente, e as máscaras são finitas. Isso significa que, se nós as utilizarmos sem necessidade, estaremos tomando máscaras de quem precisa delas para cuidar de nós, ou seja, nossos profissionais da saúde. O impacto da pandemia para esses profissionais é preocupante não só pela exposição diária a uma doença grave, mas também pelas consequências psicológicas devastadoras. A pressão por resultados, o medo de contrair a doença, a falta diária de recursos e de equipamentos de proteção individual, deixam tais profissionais vulneráveis.E acreditem: profissionais da saúde poderão ser proibidos de se exporem ao risco de atender pacientes sintomáticos sem máscaras, o que significa que pessoas correrão o risco de não terem acesso ao cuidado quando necessitarem. Como aconteceu na epidemia do Ebola, se o profissional da saúde tiver que escolher entre atender a um paciente e se expor a um risco alto demais de contágio, a orientação é que ele não preste assistência ao paciente. Não é crueldade. Trata-se de evitar duas mortes em vez de uma só. Duro de ouvir, mas é assim que é.

É nesse ponto da reflexão que entram as outras máscaras: aquelas que caem quando estamos em situações limítrofes. Apesar das dificuldades, o momento é propício para refletirmos a importância da empatia, da compaixão, da solidariedade, da compreensão e do amor ao próximo. É precisamente o momento da queda das outras máscaras, revelando a arrogância, o egoísmo, o descaso, a ignorância, a desigualdade social caracterizada pela falta de acesso a educação, emprego, a saúde, a habitação, ao saneamento básico, problemas estruturais esquecidos por muitos, e que agora ganham importância dentro do turbilhão de problemas e desafios da pandemia. Usar máscaras de forma racional não é apenas um ato inteligente: ele revela do que somos feitos. Revela nosso nível de preocupação com o próximo, nosso senso de comunidade e nossa propensão à solidariedade. Revela, ainda, nossas expectativas em relação ao mundo onde vamos viver nos próximos anos.Antes de amarrar a máscara na nuca, desacelere e pense. É justamente em meio ao caos que ser mais slow do que fast nos protege e nos dignifica.

 

  1. Casarett D. The Science of Choosing Wisely – Overcoming Therapeutic Illusion. The New England Journal of Medicine. 2016;374:1203-5.

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Rafael Thomazi, 32 anos, nascido em São Bernardo do Campo, mora em Botucatu desde 2006, onde iniciou graduação em medicina na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP). Médico formado em 2011, fez residência em clínica médica e geriatria pela FMB. Título de especialista em geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia em 2017. Trabalha em consultório como geriatra, realiza atendimento domiciliar na cidade de Botucatu, sendo médico responsável pela enfermaria de geriatria do HC de Botucatu – UNESP, preceptor dos residentes em geriatria. Mestrando no programa de fisiopatologia em clínica médica da FMB. Entusiasta da filosofia slow medicine, da prática de cuidados paliativos e desprescrição médica.

 

1 comentário

  1. José Carlos, parabéns pelo seu artigo!

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