Plano terapêutico: um tempo para compartilhar

março 21, 2018
No comments
Visitas: 2669
14 min de leitura

Por Carla Rosane Ouriques Couto:

                                                       “Somente compartilha aquele que corre riscos.  Borrel Carrió, 2012.

      Sabemos que não há uma única receita de sucesso para o momento em que médico e paciente compartilham e definem um plano de cuidados. Cada encontro é totalmente singular. Porém é importante que tenhamos um norte atitudinal se quisermos praticar uma medicina sem pressa, justa, humanizada e integral segundo as diretrizes do movimento Slow Medicine. No Brasil com frequência a conformação das redes e estrutura dos serviços de saúde, não favorecem que os atendimentos chegem ao seu melhor termo. Adicionalmente temos ainda grandes limitações na formação médica. As diretrizes curriculares brasileiras começaram a se debruçar sobre atenção integral há apenas 16 anos. Torna-se então muito oportuno o conteúdo deste artigo, que de forma sintética, mas apontando para uma expansão da visão médica, traz elementos essenciais para a prática de um tratamento centrado no paciente.    Richard Lehman , em seu artigo “The Ten Commandments for patient-centred treatment”, publicado no jornal British Journal of General Practice em 2015, sugere 10 atitudes ou mandamentos para que o tratamento se desenvolva tendo como foco maior a pessoa a ser cuidada. Os mandamentos se encontram com o Método Clínico Centrado na Pessoa e outras teorias como as recomendações de Calgary Cambridge e os 7 Passos da Consulta (Vitor Ramos), porém com um foco mais especifico nas circunstâncias e possibilidades que envolvem o plano de cuidados ou tratamento.

Reflitamos um pouco sobre cada recomendação:

1.Você não terá nenhum objetivo exceto ajudar os pacientes, de acordo com os objetivos que estes desejam alcançar.O primeiro diagnostico a ser feito é quanto a natureza da doença, incluindo as percepções do indivíduo quanto a mesma. Ambos são de igual importância: o sentimento do paciente e a concepção médica da doença, tanto em consultas simples e únicas quanto em acompanhamentos longitudinais. No cuidado crônico este pensamento é ainda mais valioso. Este entendimento pode ser rápido num paciente com “dor de garganta”. Mas terá outra conformação num paciente com Esclerose Múltipla ou Insuficiência Cardíaca. Bobbio nos lembra que muitas vezes o paciente não “se sente doente” e no percurso de um tratamento, vê descaracterizada sua autoimagem e suas idéias sobre a vida e o futuro. É frequente que hipertensos e diabéticos, ainda sem sintomas, tenham dificuldade de compreender a necessidade de medicamentos e mudanças de vida. Adicionalmente, temos segundo esse autor, por outros interesses, criado novas doenças, que há pouco tempo atrás eram apenas sintomas de uma disfunção.Este primeiro mandamento guarda estreita relação com o primeiro componente do Método Clínico Centrado na Pessoa: explorando a doença e a experiência da doença. Vale lembrar que a experiência da doença pode ser investigada pelas quatro dimensões: sentimentos, ideias, funcionamento e expectativas (acróstico-SIFE). Um instrumental importante nesse sentido tem sido a medicina narrativa: como cada pessoa conta a “sua” história sobre a “sua” doença. 

2. Você sempre buscará conhecimento dos benefícios, danos e custos de tratamento, e irá compartilhar esse conhecimento com o paciente.Profissionais de saúde e paciente tendem a perceber mais os sucessos do tratamento em comparação aos danos do tratamento. Benefícios e danos são traduzidos por dois cálculos estatísticos tradicionais: número necessário para tratar (NNT) e o número necessário para prejudicar (NNH). Tomar decisões a partir destes cálculos tem limites, além de serem de difícil entendimento para o paciente. Os números não se aplicam a indivíduos, pois são as médias das populações em ensaios clínicos. Não é possível calcular como determinado paciente vai equilibrar em sua vida real, benefícios e prejuizos. Lehman considera que precisamos conhecer melhor o NNT verdadeiro e o NNH nas comunidades tratadas e compartilhar esse conhecimento com as pessoas de maneira que possam entender, considerando a preferência e objetivos de cada pessoa. Bobbio traz inúmeros exemplos desse dilema, quando a partir de resultados de meta-análises em pacientes doentes (por exemplo mulheres com colesterol elevado que receberam estatina ou não), se deduz que todas as mulheres com colesterol elevado deveriam receber proteção através de estatinas. Porém na realidade, como o número de mulheres com eventos cardiovasculares é baixa, precisaríamos expor muitas delas a possíveis danos do tratamento, para proteger poucas de um hipotético risco cardio vascular.

3. Se seu plano falhar ou se faltam evidências suficientes para implementá-lo, considere a espera atenta como o mais apropriado a fazer.Muitas consultas consistem em um complexo diálogo de exploração, tentativa de compreensão e incerteza parcial. A menos que haja um diagnóstico claro, é geralmente melhor manter a oferta aberta de outra consulta em vez de emitir uma prescrição. Muitos dos problemas dos pacientes são autolimitados, ou são condições crônicas que flutuam como lombalgias, intestino irritável, cefaléias, podendo ser tratados com medidas e medicamentos comuns e baratos. Devemos resistir à tentação de prescrever em vez de oferecer um novo atendimento. Cumprir este tópico pode se tornar complexo em sistemas estrangulados como o SUS brasileiro. Quando não oferecemos acesso rápido ao paciente, podemos tender a prescrição indevida de forma precoce, pelo receio de que o paciente não terá novo acesso em tempo oportuno.Este mandamento está inserido no terceiro componente do Método Centrado na Pessoa: saber aguardar e observar, ao elaborar um plano conjunto de tratamento, reconhecendo a importância dos tempos de cada paciente. Segundo Bobbio, o “verdadeiro problema é que estamos imersos em uma medicina que corre veloz e não está em condições de avaliar com igual honestidade os próprios sucessos e insucessos”.

4. Você dará valor a fontes equilibradas de conhecimento, mas você se manterá atento para todas as possibilidades de enganar-se.O autor ressalta que não há uma única, confiável e imparcial fonte de conhecimento continuamente atualizada, a respeito de tratamentos efetivos que podem ser compartilhados por pacientes e profissionais de saúde.Nenhuma fonte de pesquisa é adaptada especialmente a tomada de decisão compartilhada. Os clínicos com frequência são alvos de marketing indireto pela indústria farmacêutica, na tentativa de provar que novas intervenções são sempre mais eficazes, o que geralmente não é o caso. A população geral e as organizações de pacientes também sofrem essa influência através dos meios de comunicação, envolvendo via de regra o financiamento da indústria. O paciente deve ser informado de todos os danos e benefícios conhecidos, de forma comparativa entre as alternativas. Devemos ainda evitar toda fonte de informação que tenha patrocínio da indústria.

5. Você deve tratar os pacientes de acordo com o “nível de risco” e não de acordo com o “nível de fator de risco”. Tratar pessoas assintomáticas para prevenir eventos futuros requer um processo de informação mais complexo do que quando tratamos doenças agudas. Devemos buscar evidências muito rigorosas, pois se trata de UM indivíduo singular. A intervenção vital deve ser determinada pela importância do resultado para cada pessoa, não pela redução extrapolada de eventos no população como um todo. As atitudes de cada pessoa diferem ao se tentar prevenir infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral ou alguns tipos de câncer, e cada um sofre também de forma peculiar sintomas adversos decorrentes das medidas propostas.Bobbio fala da questão do “risco do risco”, lembrando que pouco se sabe sobre as possíveis consequências psicológicas das notícias de “risco” a pessoas assintomáticas. Muito se sentem estressados, culpados por não conseguirem aderir às orientações dadas, enquanto outros podem reagir positivamente e aprimorarem o auto-cuidado. Um exemplo cotidiano são as recomendações a paciente pouco hipertensos. Bobbio cita um estudo interessante com hipertensos (Misselbrook e Armstrong, 2001), onde os pacientes aceitavam melhor a terapêutica quando era informados em termos da redução relativa do risco, em comparação aos que recebiam dados em termos de NNT. Foi interessante notar que quando era apresentado o risco individual a decisão de aceitar o tratamento era menos frequente. Além disso precisamos pensar nos vários riscos de cada pessoa, de forma integrada, não avaliando risco a risco, o que multiplicaria o dano potencial de intervenções e medicamentos. Devemos refletir e ponderar sobre riscos hipotéticos, analisando-os dentro do contexto singular de cada paciente.

6. Você não se curvará ao tratamento que persiga metas elaboradas por comitês. Pessoas sem sintomas, muitas vezes são rapidamente diagnosticadas num único índice de PA elevada ou resultado laboratorial de lipídeos alterado, e instadas a tomas drogas para atingir uma meta. O NNT para esse tratamento é desconhecido por clínicos e raramente discutido com os destinatários, que agora adquirem um rótulo de doença e se tornam pacientes de seguimento para sempre.O autor cita que no Reino Unido os clínicos são pagos pela conquista de um resultado definido como ideal, como critérios a atingir na pressão sanguínea sistólica, colesterol total ou hemoglobina glicada. Está configurada uma questão etica, pois a gratificação pode atuar como um obstáculo ao diálogo e a tomada de decisão compartilhada, que sempre precisa ter precedência sobre a conquista de ganhos financeiros.

7. Dê especial atenção aos pacientes idosos. Geralmente os idosos têm  maiores riscos, porém podem também apresentar maior risco de danos causados ​​por tratamento. A idade aumenta o risco de doença cardiovascular e da maioria dos cânceres. Isso amplifica o efeito aparente da redução de risco provocada por tratamentos. Porém estes só podem adiar, e não evitar a morte. Para as pessoas mais velhas a qualidade de vida é o mais importante. Devemos atentar que os ensaios clínicos muitas vezes são realizados em pessoas mais jovens e com menor número de comorbidades que o paciente do momento. A tomada de decisão terapêutica em idosos é muito complexa, e há poucas evidências quanto as combinações de drogas. Devemos ter máxima honestidade com nossos pacientes idosos, ou com suas famílias, nos casos de perda de autonomia e poder de decisão do paciente.

8. Você deve suspender qualquer tratamento que não apresenta benefício claro e regularmente reavaliar a necessidade de todos os tratamentos e testes. O autor orienta que consideremos quais medicamentos podemos suspender antes de considerarmos aqueles que desejamos iniciar. O médico é responsável pela continuação de uso de uma droga prescrita anteriormente e mantida, a menos que haja outro clínico com essa responsabilidade. Em sistemas fragmentados e de atenção básica incipiente como o brasileiro (alta rotatividade de médicos nas unidades básicas), é comum que clínicos apenas transcrevam as drogas de uso, e ainda acrescentem outras, sem a necessária reflexão. Neste mandamento fica claro o papel importante da longitudinalidade de cuidados, uma questão ainda a superar no SUS.

9. Você tentará diligentemente encontrar o melhor tratamento para o indivíduo, porque diferentes tratamentos funcionam para diferentes pessoas. Devemos tomar o NNT como um ponto de partida, pois o cálculo nos traz uma probabilidade estatística de um determinado tratamento e seu efeito dentro de uma população de teste. Para a maioria das condições sintomáticas, o NNT simplesmente identifica os tratamentos que podem ter valor de consideração. Devemos lembrar que o custo é sempre importante. Em algumas situações, como  dores neurológicas, vale a pena tentar drogas com uma probabilidade estatística relativamente pequena de benefício, se isso oferecer a possibilidade de sucesso e se outras tentativas falharam.Vitor Ramos propôe de forma prática que para cada plano e paciente, analisemos 4 dimensões num balanço estratégico denominado SWOT, identificando no contexto de vida, personalidade e recursos do paciente, os pontos fortes (strenghts), os pontos fracos (weaknesses), e nos recursos externos as oportunidades (opportunities) e as ameaças (threats) relativamente ao desenvolvimento do plano de cuidados.

10. Você procurará usar o menor número de medicamentos possível. Antes de imprimir uma receita, devemos considerar se uma intervenção não-farmacêutica poderia ser tanto, ou mais, eficaz. Não devemos usar drogas como um atalho porque as alternativas podem tomar muito nosso tempo de orientação ao paciente, ou não serem facilmente acessíveis no sistema de saúde.Quando utilizarmos drogas a longo prazo, é importante que comecemos com uma apenas, na dose mais baixa possível. Por exemplo, na insuficiência cardíaca, as doses mais baixas de um inibidor da enzima conversora de angiotensina tem quase o mesmo benefício quanto a mortalidade, que as doses mais elevadas, com um risco muito menor de hipotensão, hipercalemia ou síncope. Em outros momentos, será útil usar uma combinação de agentes de baixa dose, para por exemplo, reduzir a pressão arterial, com atenção aos danos e efeitos adversos potenciais. A adesão real do pacinte deve ser sempre checada antes de adicionarmos outras drogas.

Enfim, quais são os dilemas que nos desafiam na prática dos 10 mandamentos? Muito se tem discutido sobre o poder e o controle no relacionamente entre pessoa e médico, na tentativa de atingir um compartilhamento maior, uma verdadeira parceria, um contrato entre cavalheiros. Para tanto médico e pessoa precisam estar aptos a serem parceiros no tratamento. Cada parceria é unica, inclui trocas e permutas de varios graus ao longo do tempo. Para ser parceiro, o médico necessita abandonar a onipotência, exercitar o autoconhecimento e ter consciência de si. A aliança terapêutica será construída pela confiança, honestidade, compaixão, compartilhamento de histórias e respeito mútuo.      Como dilemas ainda temos o tempo, a continuidade e a constância como elementos essenciais na construção de uma relação e um tratamento compartilhado. Encontros tem seus tempos…sem pressa.       

 “Na verdade, todos somos médicos, doentes e familiares também, personagens de histórias: histórias são o que somos; contar e escutar histórias é o que fazemos.” Kleinman, 1999.

Richard Lehman,Senior Advisory Fellow em Primary Care, Cochrane UK, Oxford, UK., é o autor  do artigo comentado.

_____________

Carla Rosane Ouriques Couto é Médica de Família e Comunidade. Especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Educação Médica e Gerenciamento de UBSs. Mestre em Psicologia Social. Docente da Universidade José do Rosário Vellano – UNIFENAS. Pensando sempre nos mistérios do tempo e dos encontros.

 

Livros consultados:

Bobbio, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. 1ª edição. São Paulo: Bamboo Editorial, 2014. 248 p.

Borrel Carrió, F. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed, 2012. 346p.

Kurtz, S, Silverman, J, Benson J, Draper, J. Marrying Content and Process in Clinical Method Teaching: Enhancing the Calgary–Cambridge Guides. Academic Medicine, 2003. 78(8): 802-9.

Ramos, Vitor. A consulta em 7 passos: execução e análise crítica de consultas em medicina geral. 1. ed. Lisboa: VFBM Comunicação Lda, 2008.

Stewart, M et al. Medicina Centrada na Pessoa- transformando o método clínico. Artmed, 2ª edição. 2010.

 

 

Comente!

    Deixe um comentário

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    Newsletter Slow Medicine

    Receba nossos artigos, assinando nossa
    newsletter semanal.
    © Copyright SlowMedicine Brasil. todos os direitos reservados.