Rastreamentos salvam vidas?

dezembro 11, 2023
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Por André Islabão:

“A psicanálise? Uma das mais fascinantes modalidades do gênero policial, em que o detetive procura desvendar um crime que o próprio criminoso ignora.”

Mário Quintana

Uma ótima coleção de artigos recentemente publicada no JAMA[1],[2],[3],[4] reacende a discussão sobre a real efetividade de diversas estratégias para o rastreamento de câncer, as quais são amplamente utilizadas na população saudável e muitas vezes promovidas como sendo capazes de “salvar vidas”. Sabemos que não existe nenhuma intervenção médica que realmente salve vidas, embora seja verdade que algumas delas possam prolongar um pouco a vida das pessoas. Mesmo após décadas estudando e aplicando esses rastreamentos em larga escala, a verdade é que ainda não temos uma ideia exata sobre se eles ajudam as pessoas a viver mais e melhor. É exatamente para organizar essas ideias, recalibrar nossas expectativas e evitar o desperdício de recursos que o JAMA propõe esta bela discussão.

Prevenção versus detecção precoce

Uma distinção importante trazida pelo JAMA e que parece ser pouco discutida é aquela entre prevenção e detecção precoce. Alguns tipos de rastreamento (como os testes de Papanicolaou e a colonoscopia) podem realmente ser compreendidos como uma prevenção de câncer, já que podem detectar lesões pré-cancerígenas – como os pólipos colônicos – que podem ser ressecadas antes que haja uma transformação maligna. Por outro lado, exames como as mamografias e os testes de PSA servem apenas para a detecção mais precoce de neoplasias já existentes, o que pode ou não trazer benefícios para as pessoas. Segundo os autores, os rastreamentos do tipo preventivo costumam reduzir a incidência de câncer e a mortalidade específica por aquele câncer, diferentemente dos testes que apenas detectam mais precocemente as lesões, os quais tendem a aumentar a incidência de câncer e levam a muitos casos de sobrediagnóstico com todas as complicações relacionadas (ansiedade, procedimentos desnecessários e desperdício de recursos do sistema de saúde).

O que significa salvar vidas em medicina?

Quando dizemos que uma intervenção “salva vidas” na medicina, isso significa apenas que, na média, as pessoas submetidas a ela parecem viver mais do que aquelas não submetidas à mesma intervenção. Mesmo que uma intervenção não possa de fato salvar a vida das pessoas, já seria uma coisa bastante boa conseguirmos prolongar a vida delas, principalmente se pudermos fazer isso a um custo razoável e mantendo a qualidade de vida dessas pessoas. No caso dos rastreamentos de câncer, nossas incertezas persistem porque a imensa maioria dos estudos publicados se concentra apenas na mortalidade específica pelo câncer que está sendo pesquisado e não analisa a mortalidade total, que é a métrica que refletiria um eventual aumento na sobrevida da população que recebe o rastreamento. Essa dificuldade existe porque a demonstração de benefício sobre a mortalidade total exigiria que se analisasse um número bem maior de pessoas do que o necessário para a demonstração de benefício apenas sobre a mortalidade específica do tipo de câncer rastreado.

Existe ainda a possibilidade de que um determinado rastreamento realmente diminua a mortalidade específica por aquele câncer rastreado sem reduzir a mortalidade total das pessoas. Nestes casos, poderia haver um aumento da mortalidade por outras causas, o que anularia o eventual benefício do rastreamento. Isso pode ocorrer por complicações diretas do rastreamento (como no caso de uma perfuração intestinal causada pela colonoscopia) ou pela cascata de intervenções que pode ser desencadeada devido aos achados – muitas vezes de relevância incerta – dos exames de rastreamento (como a radiação ionizante aplicada em exames de imagem realizados para esclarecer alterações detectadas no rastreamento ou uma infecção generalizada causada por uma biópsia prostática). Além disso, muitos fatores de risco para câncer – como tabagismo e obesidade – também são fatores de risco para outras doenças e, assim, uma pessoa pode simplesmente trocar sua causa mortis de câncer para infarto do miocárdio ou AVC sem ter a vida de fato prolongada pelo rastreamento.

Então os rastreamentos prolongam vidas?

Infelizmente, a resposta não é tão simples. Um dos artigos trazidos pelo JAMA aborda especificamente essa questão em uma revisão sistemática que analisou todos os ensaios clínicos randomizados (ECRs) sobre as principais modalidades de rastreamento de câncer atualmente usadas e nos quais se avaliou a mortalidade total ou o prolongamento da vida. A metanálise envolveu 18 ECRs abrangendo mais de 2 milhões de pessoas com um seguimento médio de 10 a 15 anos. As modalidades de rastreamento analisadas incluíram mamografia (câncer de mama); colonoscopia, sigmoidoscopia, sangue oculto fecal (câncer de cólon); PSA (câncer de próstata); e tomografia computadorizada de tórax (câncer de pulmão).

Os resultados não foram muito animadores: os autores relatam que apenas o rastreamento do câncer de cólon com sigmoidoscopia prolongaria a vida (em 110 dias) de forma estatisticamente significativa. Na verdade, até mesmo neste ponto os autores foram generosos, já que o intervalo de confiança obtido na metanálise alcançaria a marca de 0 dias, o que pode gerar dúvidas quanto à sua real significância. Não houve demonstração estatisticamente significativa de maior sobrevida com nenhuma das outras modalidades de rastreamento analisadas. A conclusão dos autores é de que, entre todas as modalidades analisadas, apenas a sigmoidoscopia traria algum benefício em termos de prolongar a vida das pessoas (em pouco mais de 3 meses).

A quem interessam os rastreamentos?

Um dos artigos do JAMA traz uma discussão sobre quem são as partes interessadas nessa verdadeira indústria de rastreamentos de câncer que criamos ao longo dos anos, e isso é importante para entendermos essa discussão.  De um lado temos os pacientes, os quais naturalmente acreditam no que veem na mídia e querem realizar “todos os exames possíveis” para viverem mais e melhor, muitas vezes não compreendendo exatamente os reais benefícios e os riscos a que estão se expondo nos rastreamentos. De outro lado temos muitos profissionais e empresas que lucram bastante com os inúmeros rastreamentos, como no caso de quem realiza exames de imagem ou exames endoscópicos invasivos, os quais costumam ser bastante resistentes a quaisquer medidas que desestimulem as campanhas de rastreamento.

Existe ainda o papel desempenhado pela própria classe política, para quem pode ser muito mais vantajoso defender as campanhas de rastreamento e capitalizar votos com isso em vez de adotar uma postura sóbria e desestimular aqueles rastreamentos que não tenham comprovação científica de benefícios em termos de sobrevida global – ainda que isso trouxesse o benefício duplo de evitar danos às pessoas e ao mesmo tempo preservar os escassos recursos do sistema de saúde. O resultado final é que seguimos assistindo aos meses coloridos e a várias campanhas de conscientização sobre modalidades de rastreamento que até hoje não sabemos ao certo se funcionam.

Por que essa discussão é importante?

Talvez a maior motivação para essa discussão atual sobre nossas estratégias de rastreamento seja a ameaça de uma nova onda de rastreamentos trazida pelos testes laboratoriais modernos que prometem detectar vários tipos de tumores em amostras de sangue (as chamadas “biópsias líquidas”). Além disso, existe a possibilidade real de que a inteligência artificial (IA) também invada o campo do rastreamento de câncer a qualquer momento, novamente com resultados incertos. Por incrível que pareça, estamos prestes a implementar novas estratégias de rastreamento sem sabermos ainda se nossas estratégias atuais, as quais são usadas há décadas, trazem mais benefícios ou danos à população. É por isso que os editorialistas do JAMA apontam para a necessidade de estudos randomizados que demonstrem benefícios claros sobre a mortalidade total antes de se aprovar essas novas tecnologias. Essa discussão é urgente porque os interesses financeiros por trás dessa nova indústria de IA e de testes laboratoriais para detecção de câncer são poderosíssimos e já estão exercendo forte pressão nas agências reguladoras, nos profissionais e nos pacientes através da mídia.

Para se ter uma ideia sobre o tamanho do problema, basta saber que o custo estimado de cada “biópsia líquida” é de cerca de 1.000 dólares. É claro que muita gente vai querer realizar um teste rápido e indolor que promete o verdadeiro milagre de detectar vários tipos de câncer e reduzir a mortalidade das pessoas, principalmente se os sistemas de saúde forem obrigados a cobrir os enormes custos da empreitada. O problema é que, seguindo um simples raciocínio bayesiano, a realização de exames em massa em uma população saudável irá gerar uma enormidade de resultados falso-positivos. Além disso, já foi demonstrado em estudos que 1% das pessoas que realizam o exame de “biópsia líquida” acaba realizando uma PET-CT para procurar um tumor supostamente presente acusado pelo teste (um provável falso-positivo). Segundo os autores, a dose de radiação ionizante a que uma pessoa é exposta ao realizar uma PET-CT equivaleria a 1.800 radiografias de tórax, o que poderia gerar nada menos que 60 casos de câncer causados pela radiação da PET-CT para cada milhão de “biópsias líquidas” realizadas. Criaríamos aqui o paradoxo de realizar um teste que possivelmente cause mais cânceres do seria capaz de prevenir. Isso sem falar em uma enormidade de incidentalomas identificados em exames de imagem desnecessários, com todas as complicações possíveis decorrentes.

Então os rastreamentos não funcionam?

A rigor, a ideia amplamente promovida de que nossos vários rastreamentos “salvam vidas” não parece ser verdadeira para a grande maioria dos casos sob a ótica da melhor ciência disponível, o que justificaria agirmos de forma mais parcimoniosa e menos arrogante na hora de indicarmos ou defendermos de maneira veemente as diversas modalidades de rastreamento. Isso não significa que tais rastreamentos sejam sempre inúteis ou que eles devam ser totalmente abandonados. Os próprios autores da metanálise do JAMA admitem que os resultados de seu estudo devem ser usados para ajudar a promover uma discussão mais bem informada entre médicos e pacientes, permitindo uma melhor tomada de decisão compartilhada.

A verdade é que, para a média das pessoas, os rastreamentos não parecem ser muito úteis em termos de ajudá-las a viver mais e melhor. Assim, usados de forma generalizada e automática, sem um mínimo de critério e em todas as pessoas, eles não parecem ajudar muito. Porém, eles podem demonstrar uma melhor relação entre benefícios e riscos se conseguirmos selecionar melhor as pessoas a serem rastreadas. Parte da arte médica é descobrir aquelas pessoas cujas características clínicas indiquem um maior risco de desenvolver o câncer em questão e, consequentemente, mais chances de se beneficiarem com os diversos tipos de rastreamento.

O que fazer?

Como de praxe, a adoção da postura parcimoniosa promovida pela Slow Medicine pode oferecer uma solução para o impasse representado pelo rastreamento da população para câncer. A análise cuidadosa das evidências científicas, a parcimônia na adoção das novas tecnologias de rastreamento, a tomada de decisão compartilhada propiciada por uma relação clínica significativa e a ética de não causar danos são fundamentais, tanto para promover a saúde das pessoas como para preservar os recursos do sistema de saúde.

Considerando a ciência disponível sobre o assunto, parece claro que nenhuma modalidade de rastreamento tem um benefício tão grande e universal a ponto de ser uma indicação formal e impreterível para todas as pessoas. Neste sentido, devemos lembrar também do princípio da individualização dos cuidados, o qual nos lembra que cada pessoa tem o seu risco individual, bem como seus valores e preferências. Isso significa que mesmo um rastreamento que não tenha se mostrado benéfico na população geral pode ser adequado se as características individuais daquela pessoa de alguma forma indicarem um maior risco para a doença rastreada. Por outro lado, mesmo um rastreamento aceito como rotineiro pode não fazer sentido para muita gente e deixar de realizá-lo não trará danos na grande maioria das vezes.

Como já foi dito alhures[5], a prática médica diária é cheia de incertezas e está longe de ser uma atividade simples. Se a questão dos rastreamentos não tem um resposta direta do tipo “fazer ou não fazer”, isso apenas reflete essa complexidade da atividade médica que não funciona com base em um raciocínio binário simples. Devemos entender a dúvida aqui como um alerta para ligarmos o “modo slow” ou nosso pensamento lento e racional (tipo 2) e não termos pressa para decidir sobre o rastreamento. Se é verdade que nenhum rastreamento realmente “salva vidas”, é ainda mais verdade que ninguém nunca morreu por aguardar algumas semanas para tomar uma decisão relativa a um rastreamento.

André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Trabalha em Porto Alegre, em seu consultório privado. Além disso, é tradutor e escritor . “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, é um livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine. Recentemente publicou o livro “O risco de cair é voar“. André é também autor do blog andreislabao.com.br .

Conheça a página da foto que ilustra o post neste link.

[1] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2808645

[2] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2808653

[3] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2808648

[4] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2808646

[5] https://www.slowmedicine.com.br/os-medicos-e-a-certeza-da-duvida/

2 Comentários

  1. Parabéns André Islabão! O raciocínio clínico é soberano e os exames , complementares. O rastreamento laboratorial coloca o carro na frente dos bois e decreta o fim da clínica! Estar ao lado do paciente, com respeito à sua individualidade ainda é o principal ato médico, e se feito com amorosidade opera bons resultados sempre. Grato

  2. Há vários anos li algo como “a boa medicina nos remete ao passado”. Na NEJM. Era clara a opinião: o contato direto com a pessoa é mais efetivo!

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