Tatuagem

maio 1, 2022
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8 min de leitura

Por Lorraine Veran:

“Na minha memória – tão congestionada – e no meu coração – tão cheio de marcas e poços –

você ocupa um dos lugares mais bonitos.”

Caio Fernando Abreu

Era um dia normal de inverno em uma cidade à beira dos trópicos, onde ventos fortes faziam folhas rodopiarem como borboletas pelos canteiros. Em um grande vendaval de ruídos secos, uma dança revolta da natureza morta. Os dias curtos abraçados pelas noites ávidas já deixavam descobertas densas nuvens entremeadas por estrelas foscas e tímidas. Uma disputa de brilhos sobre meus pensamentos abstratos.

Eu não podia deixar de admirar, mesmo que por instantes, a diversidade dos tons que a cada dia mudava de cor, tingindo os céus com novas auroras de esperança.  Esperança. Nunca precisamos tanto dela no seu sentido mais pleno.

Um cataclisma abalava a humanidade. Estávamos vivendo a pior das pestes: em pleno século 21, uma pandemia nos moldes mais medievais assolava o mundo, trazendo consigo a solidão – a solidão da compreensão, do desrespeito, da desvalorização e da fragmentação do corpo e da alma.

Porém, antes mesmo de março de 2020, outra mazela replicava-se de modo igualmente viral: o adoecimento das relações autênticas com a alteridade já abria espaço para formas líquidas de amar um “outro” cada vez mais descartável e substituível em um paulatino desgaste das emoções reais. Seja nas telas dos celulares ou nos feeds das mídias sociais, eu já identificava verdadeiros exílios individuais em ilhas egocêntricas, onde o mundo só parecia fazer sentido quando orbitava em torno de nós mesmos.  

O novo cataclisma, no entanto, nos atingiu em cheio no ponto mais vulnerável de nossa condição humana: a finitude. Não a finitude real per se, mas seu súbito e indigno percurso.

Como profissional de saúde, presenciei glórias e derrotas, fui elevada às alturas com as alegrias de alguns, mas também apalpei o chão das tristezas mais profundas de outros. Vi com meus olhos o choro de um riso e a mudez de uma lágrima, senti a dor de uma ausência e a cura avassaladora da presença.  Atestei nossa capacidade como cuidadores de transitar entre um ponto e outro em instantes, de um peito cheio de fôlego à fome de ar no vácuo, de juízes da vida a donos de uma morte anunciada. No momento em que lidamos com os opostos absolutos, entendemos o que precisamos para crescer interiormente. Em nosso quotidiano, uma caminhada incessante pelos contrastes da vida. Atravessamos o luto mais temido das perdas solitárias e testemunhamos renascimentos transcendentes.  Quem sabe, depois do cataclisma, uma nova era se ergueria sobre os escombros da pandemia para fortalecer os laços da humanidade e da tecnociência? Assim eu imaginava.

Ainda perdida em minhas reflexões, entrei na sala do morgue no subsolo de um hospital da zona sul do Rio de Janeiro. No meu trajeto até a sala, já senti o cheiro mudar. Algo murchava dentro de mim: era como se não existissem flores verdadeiras e se, de uma hora para outra, o ar mostrasse todo seu peso e densidade. Abri a porta fria e taciturna. Do espaldar, já pude visualizar o corpo imóvel do meu paciente. Na sala, ele era único em sua solitude. Sobre seu peito, uma placa onde se lia “COVID-19”.

Para um médico, nenhuma sensação é pior do que a impotência diante de uma doença. Porém, nesta experiência, algo diferente se anunciava: não estávamos apenas impotentes diante da peste do século, mas também incrédulos diante de uma morte desumana. No silêncio do morgue, palavras inaudíveis: nada me interpelava mais do que aquele corpo inerte. Mesmo sem vida, ele falava. Mesmo coberto e devidamente lacrado, ele gritava para mim. Seus urros contestavam a indecência do que vivíamos na era da tecnociência. Naquele peito, mais do que uma placa: ali eu enxergava algo ainda maior do que um apelo humanitário. Na solidão do morgue, senti vibrar dentro de mim o abalo da perda, a dor da saudade, a intensidade do medo, a força da tristeza, o furor da indignidade. Era um inconteste desconhecido e um descaracterizado ser humano. Era apenas “um saco preto”, na linguagem popular. Mas eu não conseguia percebê-lo assim.

Naquele momento, congelada por aquela visão, lembrei-me do meu primeiro cadáver nas aulas de anatomia da Escola de Medicina. Era 1987, e eu era uma adolescente de 16 anos conhecendo Athayde De Tal – eram estes o nome e o sobrenome de um jovem forte perdido nos insalubres recônditos da vida, porém resgatado pela avidez da ciência.  

Após 34 anos, ainda carrego a gratidão pelo uso de seu corpo em prol do conhecimento, por seu serviço à medicina e pela ajuda prestada a outras pessoas, cujos sofrimentos pude aprender a mitigar. Ele me deu de graça, sem saber, o conhecimento de nossos pedaços, de nossas entranhas, de nossa matéria biológica.  Com Athayde, dissequei o maior órgão do corpo – a pele, a gordura que nos molda, os músculos que nos fortalecem, as fáscias dolorosas, os nervos e seus sentidos, além das vísceras do nosso todo. Toquei em um coração, literalmente. Senti a maciez e a leveza de um pulmão, a rudeza de um fígado, as voltas dos intestinos e as texturas de tantos outros órgãos. Embrenhei-me pelos seus vasos, grandes e pequenos, explorei os emaranhados que nos proporcionam a máxima de viver. Aprendi milhares de nomes difíceis, que se incrustaram em minha memória e, hoje, tornaram-se tão fluentes e corriqueiros. Eu conseguia sorrir ao lado de Athayde, pois ele ocupava um lugar de honra e dignidade.

Ali, naquele morgue, minha vontade era chorar: um choro de revolta pela crueldade tão arrastada daquela moléstia que já durava meses, castigando famílias, descosturando seus laços, destroçando seus lares. A pandemia deste século transformou nossas identidades, alterou nossos hábitos, nos fez perder o calor humano e nos roubou até a certeza de um fim decente. Tirou de nós o consolo da despedida, a oportunidade de dar adeus. E sem adeus, a vida parece desprovida de significado, perdendo-se como nuvens em um céu infinito. 

Aquele corpo desapareceria como fumaça da memória de seus entes queridos, sem rituais fúnebres íntimos, violando suas crenças, suspendendo seus valores, tornando impalpáveis as mãos ávidas de saudades.

Um visgo me prendia àquele corpo. As mensagens sem palavras que ele me transmitia se imprimiam em minha pele como uma tatuagem.  Meu olhar incrédulo se fundia com o brilho tênue da lâmpada que iluminava a sala. Na saída, tristeza e vergonha me arrebataram. Apenas um número identificaria aquela pessoa. Em uma sociedade onde tudo é convertido em produto, sentimentos são minha forma de resistir: sentimentos não podem ser numerados, precificados, nem traduzidos em código de barras. Mesmo assim, com sua dignidade roubada, aquele corpo era reduzido à doença que o acometera, que abreviara sua biografia e limitava sua existência à grafia de letras mortas.

Morte e vida caminham juntas, separadas por uma linha tênue e facilmente transponível. Aprendi com a medicina que a vida nada mais é do que um momento efêmero, que se esgota em um breve instante. No entanto, a fugacidade de nossa existência não é capaz de esvaziá-la de significado. Hoje, mais do que nunca, é necessário resgatar seu sentido mais profundo, entender seus propósitos, reconhecer o papel insubstituível desempenhado por cada um de nós, reverenciando com sagrado respeito a história que construímos, as experiências que vivemos e a trajetória que concluímos.

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Lorraine Veran é carioca, e carrega uma bagagem de vivências que lhe permitiu uma ampla experiência em medicina: especialista em Endocrinologia, trabalhou muitos anos em Terapia Intensiva e depois embrenhou-se no largo território dos Cuidados Paliativos, com particular atenção aos doentes oncológicos. Tem um interesse especial por Medicina Narrativa, sendo uma das organizadoras do livro Medicina Narrativa – a arte do encontro.

2 Comentários

  1. Não sou médica. Mas acompanho esse movimento, não apenas porque quero para mim uma medicina humanizada como a que vocês carregam . Vocês me sensibilizaram para a Slow Medicine e também pela literatura. Pela capacidade de narrar e refletir com tanta profundidade . Lorraine, seu texto é lindo. Triste. Chorei ao ler. Sua narrativa me levou por caminhos da sensibilidade mais do que tudo. Muito obrigada ..

    • Marilena, muito bom saber que minhas palavras tocaram seu coração. É necessário empregarmos uma filosofia humanista de cuidado, onde enxergamos para além do óbvio e tocamos no mais valioso dos nossos sentidos. Abs

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