The Blue Zones

junho 5, 2017
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Por José Carlos Campos Velho:

A primeira vez que ouvi falar das Blue Zones foi na palestra de abertura do Congresso Sul Brasileiro de Geriatria, creio que em 2010, no Teatro São Pedro, a casa de espetáculos mais tradicional de Porto Alegre, encravada na praça central da cidade. A memória nos prega peças e não sei se é algo particular meu, mas frequentemente eu lembro melhor de um evento cultural do que do conteúdo de uma palestra. Minha recordação do conteúdo de algumas palestras de um congresso em Chicago em 2004 é bem pobre, mas lembro perfeitamente dos lugares que assisti a shows de blues e jazz… Tenho uma noção esmaecida do que ouvi naquela noite fria no sul. Lembro-me de estar emocionado com a beleza e elegância do tradicional teatro gaúcho. O palestrante era espanhol, e falou de uma coisa que não esqueci, uma sugestão que ele trazia a partir do tema que havia explorado, que era evitar conveniências no cotidiano – por exemplo, escadas-rolantes – na perspectiva de manter-se ativo. O que guardei na memória foi o assunto abordado: as Blue Zones. Que me remetia a lugares distantes e exóticos, onde as pessoas viviam muito, atingindo idades avançadas, com percentuais de centenários além dos padrões demográficos habituais, e que mantinham-se ativos, preservando sua qualidade de vida e sua saúde. Semelhante ao que aconteceu após ter tomado contato com a filosofia da Slow Medicine, eu sabia que se tratava de uma questão importante, transformadora, sobre a qual em algum momento eu gostaria de me debruçar.

Alguns anos depois, já envolvido com o projeto de divulgação da Medicina sem Pressa no Brasil, resolvi resgatar o projeto de ler o livro “The Blue Zones” para conhecer em profundidade do que se tratava. Comprei o livro mas, antes disso, fui conhecendo um pouco melhor a ideia, lendo a reportagem da National Geographic , semente da qual germinou o projeto, visitei o site na internet e por fim vi o TED de Dan Buettner onde ele fala entusiasticamente sobre sua pesquisa e do que encontrou nas Blue Zones. Porém foi quando finalmente mergulhei na leitura do livro, percebi que ali se encontrava o segredo.

Trata-se de um belíssimo relato, de leitura ágil e relativamente fácil. Infelizmente o livro ainda não tem tradução para o português. Dan Buettner é um contador de histórias; ao longo do livro, ele relata suas experiências pessoais, em viagens e vivências nos quatro cantos do mundo. É a narrativa das conversas com os centenários, visitando suas casas, acompanhando seu cotidiano, conhecendo suas histórias de vida, seus hábitos e suas famílias. Mergulhando nas culturas locais e explorando as particularidades de cada uma das Blue Zones. Um fato peculiar: este nome não tem nenhuma origem esotérica ou cabalística – surgiu de uma maneira muito mais prosaica: um de seus colaboradores circulava no mapa as regiões que seriam exploradas, uma vez reuníssem características que poderiam enquadrá-las como uma “Zona Azul”, com uma caneta com tinta azul.

E quais são as Blue Zones? São cinco locais em diferentes lugares do mundo: Okinawa, um arquipélago no sul do Japão; uma região montanhosa e isolada da Sardenha; uma comunidade na Califórnia, chamada Loma Linda; a península costarriquenha de Nicoya e a ilha grega Ikaria. A descoberta destas regiões e sua caracterização como uma Blue Zone não era tarefa simples. Partindo de relatos da existência de um número excepcional de longevos em uma determinada região do mundo, a primeira tarefa era determinar a veracidade da informação, através da averiguação dos registros de nascimento. Uma vez estabelecida a fidedignidade dos dados, passava-se para uma profunda investigação da região, através de uma expedição com um grande número de técnicos, jornalistas, pesquisadores, gerontólogos, fotógrafos e cineastas. Uma vez no local, a equipe conversava com médicos, demógrafos, biólogos e – a parte mais valiosa – com os idosos, na sua maioria nonagenários e centenários.

A pesquisa era conhecer melhor estas pessoas e estas comunidades e tecer hipóteses de quais fenômenos se associavam à longevidade. E, embora houvessem características comuns, entre elas a manutenção de uma vida ativa até extremos etários, fortes laços familiares, uma vida comunitária consistente e persistente e uma alimentação rica em vegetais, em geral cultivados pelos próprios idosos, haviam características específicas de cada lugar e cada cultura.

No início do livro o autor faz uma investigação sobre o envelhecimento, desde um ponto de vista conceitual, com algumas autoridades, entre eles Robert N. Butler e procura esclarecer onde residem os segredos da longevidade. Não demorou para que ficasse claro que, embora relevante, a determinação genética da longevidade tem um papel menos preponderante do que o estilo de vida, a alimentação, uma vida fisicamente ativa e fortes laços com a comunidade, e também a inexistência de “pílulas” que possam aumentar o tempo de vida.

A primeira Blue Zone identificada foi a região montanhosa da Barbagia, na Sardenha, relativamente isolada até recentemente. Sua população vive no lugar desde épocas imemoriais, sendo relativamente homogênea do ponto de vista genético, e com diferenças em relação à população da Europa continental, como uma menor incidência de diabete tipo I e altas taxas de pessoas longevas. A história da Sardenha é riquíssima, e nesta região da Barbagia a atividade pastoril – em particular cabras – é uma das mais frequentes. A família tem um valor crucial na vida dos habitantes, e alguns a consideram como a coisa mais importante de suas vidas – o seu propósito de vida. O respeito aos idosos, por sua experiência e sabedoria, o consumo de queijos de cabra – pecorinos, o vinho da região (chamado Canonnau, com alta concentração de flavonóides), o bom humor e as longas caminhadas para acompanhar os animais, podem ter relação com a vida longa.

A segunda região abordada no livro é Okinawa, um arquipélago no sul do Japão. Uma bela história é a de Ushi Okushima, uma centenária que Dan havia conhecido em sua primeira viagem para a ilha, quando da reportagem publicada na National Geographic. Sayoko Ogata era uma executiva japonesa que acompanhou a primeira expedição para Okinawa. Levava uma vida atribulada em Tokio, trabalhando 14 a 16 horas por dia. Dan tem dificuldade para contactá-la cinco anos depois, em sua segunda visita. Ele então descobre que ela saiu de seu trabalho, mudou-se de Tokio para uma pequena cidade, onde foi viver com seu marido, professor da escola local, e cuidar de seus filhos. Após recusar inicialmente a proposta de participar de uma segunda expedição, ela acaba aceitando posteriormente. E confessa que seu contato com Ushi mudou sua maneira de ver o mundo. Ela resolveu deixar a metrópole e resgatar valores que considerava mais verdadeiros e profundos e que trouxessem um sentido mais perene para sua vida. Certamente alguns alimentos  presentes na dieta local tem relação com a longevidade extraordinária deste povo, a alimentação rica em vegetais, frequentemente cultivados pelos próprios idosos, o consumo de chá, missô, tofu, temperos como artemísia e açafrão. Mas algumas peculiaridades tornam muito especial  sua cultura: os habitantes de Okinawa tem o seu Ikigai, “a razão pela qual eu levanto pela manhã”, um propósito de vida, o hara  hachi bu, a regra dos 80%, que lhes sugere comer até que se sintam satisfeitos, deixando o estômago 20% vazio. Eles reverenciam seus ancestrais, permanecem ativos e tem seu moai , um grupo social cultivado ao longo da vida, que serve como uma uma rede de suporte para as horas difíceis e as comemorações.

Na América do Norte, Dan Buetner nos leva para a Califórnia. O American Way of Life pode nos seduzir de uma série de maneiras, mas certamente não se vincula a uma perspectiva de uma vida mais longa. Loma Linda é uma comunidade de adventistas do sétimo dia, que tem um modo de vida muito particular. Se existem algumas características em comum nas Blue Zones, existem peculiaridades em cada uma delas. O consumo de nozes, a dieta vegetariana, o respeito ao Sabatha presença da religiosidade no cotidiano das pessoas, e uma vida comunitária densamente enraizada, onde a religião tem um papel especial, parecem ter um papel relevante na longevidade dos habitantes. O Sabath permite uma espécie de santuário no tempo, onde as pessoas convivem ao longo de 24 horas, a cada semana, com um forte sentimento de pertencimento, desligados das coisas mundanas, fazendo caminhadas na natureza, permanecendo próximos uns aos outros e reverenciando a Deus. A comunidade de Loma Linda é objeto de vários estudos, entre eles o Adventists Health Study , onde um dos aspectos salientados são os benefícios da dieta vegetariana.

Da Califórnia, seguimos para a América Central. Uma das mais emocionantes narrativas do livro é a descoberta da Blue Zone de Nicoya, uma península da Costa Rica. Uma característica interessante, que é comum as todas as Zonas Azuis, é a farta exposição ao sol. Outra questão que chama a atenção é que a maioria delas têm populações que vivem naquelas regiões desde tempos imemoriais. Na península de Nicoya, boa parte das pessoas descendem dos índios chorotegas, e talvez possa haver uma conexão entre a longevidade de seus habitantes e um padrão genético específico. Alimentação rica em frutas tropicais, uma vida ativa – frequentemente com trabalho pesado – até extremos etários, o consumo de tortilhas e uma característica peculiar, a frequência com que os homens mantém uma vida amorosa, muitas vezes com amantes, até idades muito avançadas. A água desta região é muito rica em cálcio, e sua ingestão cotidiana associada à exposição ao sol, talvez possa contribuir para a saúde do sistema osteomuscular. Mantendo uma  semelhança ao Ikigai de Okinawa, em Nicoya se fala da importância de um “Plan de Vida“, um objetivo que lhes estimula a seguir tocando a vida em frente, como por exemplo, a responsabilidade de preparar a refeição de domingo para a família, como relata um dos anciãos entrevistados. A família é um dos baluartes da vida comunitária.

A última Blue Zone explorada é a ilha de Ikaria, na Grécia. Novamente, os ikarianos cultivam a vida em comunidade, com frequência visitando seus vizinhos – o que, no relevo montanhoso da ilha, pode significar longas caminhadas – para um copo de vinho ou uma xícara de chá. O consumo de vegetais frescos, fartamente temperados com o azeite de oliva, de leite de cabra, de mel, de infusões e do forte vinho tinto local fazem parte do dia-a-dia. Ikaria também foi objeto de um estudo, The Ikaria Study , que se debruçou sobre as características demográficas e epidemiológicas da população da ilha. Como sempre, uma singularidade dos ikarianos – além de dormirem até tarde, é frequente que tirem uma sesta depois do almoço.

Os capítulos finais do livro são dedicados ao estudo das características comuns das Blue Zones, na perspectiva de identificar determinantes que possam ser extrapolados para a vida cotidiana de qualquer pessoa, ou seja, como criar a nossa própria Blue Zone, incorporando estas atitutes em nossas vidas. Dan Buetner criou os “Power 9“, nove atitutes que podem ajudar as pessoas a atingir idades muito avançadas, mantendo autonomia, independência e propósito. Uma vida longa, saudável, transpassada de significado e, porque não, felicidade.

E no Brasil, nós temos as nossas Blue Zones? Duas cidades no Brasil tem sido estudadas por terem características que as aproximam das regiões descritas no livro, Veranópolis, no Rio Grande do Sul e Maués, na Amazônia. Ambas foram objetos de estudo por especialistas, e várias publicações sobre estes locais podem ser encontradas. A vida dos descendentes de italianos, na região serrana do Rio Grande do Sul, traz enormes semelhanças com as outras Zonas Azuis, enquanto a região Amazônica pode nos revelar segredos pelas peculiariedades de sua alimentação e quiçá pelo consumo de guaraná.

A filosofia da Slow Medicine compartilha sua visão de mundo com as revelações do modo de vida observado nas Blue Zones. Surpreendentemente, não há relatos de que a longevidade esteja relacionada à intervenções médicas específicas. Em Okinawa fala-se de vacinação e intervenções cirúrgicas como a apendicectomia enquanto fatores que podem ter influenciado as pessoas a atingirem idades mais avançadas. Mas os determinantes são outros. Fica bastante evidente o papel da alimentação, de hábitos saudáveis, de uma forte conexão com a família e a comunidade, e da importância de um propósito na vida. A vida nas Blue Zones é tranquila, e o tempo é sagrado. Tempo para dedicar-se ao exercício banal e prosaico de simplesmente viver. Sem pressa.

9 Comentários

  1. Gostei muito da reportagem.Meu imaginário esteve em todos os locais citados,só conheço um deles apenas: Veranopolis,é apaixonante….trabalho com é para pessoas Idosas @idosodmado,nossa paixão de todos os dias,desafios que motivam o desenvolvimento de nossos objetivos institucionais e pessoais….parabéns para a vida que nos permite envelhecer.Abracos

  2. Parabéns pela reportagem. Sou um apaixonado pela longevidade (e por idosos), e há anos venho estudando o tema. Depois de ler Blue Zones fiquei ainda mais fascinado. Na sequência conheci o criador do Movimento Cidades Saudáveis (Trevor Hancock) que, junto a Domenico di Masi, inspirou minha tese, parte dela vinculada ao Slow Cittá, o q acabou me levando a Greve in Chianti, berço dessa filosofia. Atualmente trabalho na Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, e justamente hoje estive em uma reunião para a elaboração da política estadual da saúde do idoso. Se possível, gostaria de manter contato para trocarmos ideias e experiências. Mais uma vez, parabéns! e obrigado pela atenção.

  3. Fantástico!!
    Parabéns pelo excelente artigo.
    Emerson Castro,
    Oftalmologista ” slow medicine”.

  4. Texto muito bem escrito, voa da geografia à qualidade de vida no envelhecimento! Movimento que começa na juventude! Enaltece a simplicidade, hábitos saudáveis e o amor aos seus e a si!
    Além disso, a indicação de livros e matérias a serem buscadas e lidas enriquecem, sobremaneira, a primeira leitura!
    De textos anteriores, já comprei a “Arte perdida de curar”! Espero ansiosa, o final de semana frio aqui do Sul, para iniciar a bela e relevante leitura!
    Seguirei outras indicações! Obrigada!

    • Obrigado, minha querida irmã…. O amor aos seus e a si. Sem dúvida, como comentado pelo André Negrão acima, as comunidades virtuais podem nos aproximar, particularmente quando estamos distantes. Porém o abraço e o carinho real de minha irmã mais velha, não tem substituição. Mas o afago virtual é benvindo…. 🙂

  5. Belíssima dica e lembrança.

    Um ponto. Além das disposições individuais e ambiente, chama atenção a vida comunitária destas Blue Zones. De algum modo, seria interessante saber se as comunidades virtuais tomarão, para os indivíduos, este aspecto benéfico das Blue Zones. Será possível?

    • Pois é, André. Acho que comunidades virtuais são complementares e funcionam como instrumentos acessórios de compartilhamento de informação e sentimentos entre as pessoas. Mas não creio – e talvez nem ache saudável – que substituam a convivência “face-a-face”… Pelo que pude entender, nas Blue Zones a convivência se estrutura no aperto de mão, no abraço, na reverência ao outro, concreto e palpável….

  6. Em primeiro lugar quero parabenizar a elegância do texto, uma narração onde a imaginação se pousa e faz acontecer cenários fantásticos. Segundo que não há “pílulas” mágicas mas filosofias de vida que pautam por um estilo harmonioso, coerente com tradições, vínculos familiares, ou seja, vínculos afetivos e efetivos, alimentos ingeridos num ritual de aliança com a terra, com a história da região, dos costumes. Se respira uma espiritualidade que liga todas essas tradições. Acredito que o segredo, se é que existe esse segredo, não o vejo tão secreto assim, é transpormos um pouco dessa solida rotina para nossa vida do dia a dia nas grandes metrópoles, até porque é aqui que vivemos, daqui tiramos o pão nosso de cada dia a dia e é aqui que temos nossa família e nosso trabalho. A parte da Sardenha foi a que mais gostei, queijo pecorino e vinho, que dupla. Mangia che ti fá benne!

    • Verdade, Vera, uma das coisas que Dan Buettner e seus colaboradores sugerem (existem informações abundantes no site, bastante comercial por sinal) é a criação da nossa própria Blue Zone, sugerindo instrumentos e atitudes que podem ser tomadas pelas pessoas – e suas comunidades – para buscar uma vida mais saudável e equilibrada.

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