Uma cabeça cheia de sonhos não tem espaço para o medo

abril 19, 2020
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Por Jaqueline Doring Rodrigues, Vera Anita Bifulco e Antônio Pessanha Jr:

Os ditos populares, os provérbios, as parábolas usadas por Cristo, as fábulas, contos e mitos são exemplos de uma sabedoria atemporal.

Os assuntos se repetem independente de Pandemias, os protagonistas não são os mesmos e as épocas se distinguem uma das outras pela evolução da humanidade, em tese não há retrocesso.

Como lidar com o que é desconhecido?

Há duas palavras que retratam de forma exemplar como devemos encarar o momento atual: incerteza e humildade. A primeira move o motor da oportunidade e a segunda somente está presente naqueles que conhecem as leis da natureza. A incerteza faz fronteira com o limite do conhecimento, desta forma quanto maior o território conhecido, mais extenso é o campo de experiência da incerteza, o aumento da expectativa dos resultados da ciência e da tecnologia intensifica proporcionalmente, nossa percepção do risco da incerteza. Tudo na natureza nasce e morre, ou seja, sua forma deteriora-se, decompõem-se. Desde todas as estrelas com seus milhões de anos até um minúsculo vírus com duração de horas a dias, tudo está regido pelas mesmas leis.Saímos do mundo presumido e adentramos num mundo de incertezas. A natureza do homem gira em torno de certezas presumíveis. Retirar essas falsas certezas retira do homem também sua segurança, sua estabilidade, seu senso de controle.

As incertezas no cenário atual nos obrigam a um olhar centrado mais nas habilidades que temos em nós mesmos e nas questões essenciais que são sempre de caráter antropológico e humanístico.  Essas premissas são a base da Filosofia Slow Medicine a qual busca incansavelmente a humanização dos cuidados à saúde.

A humildade é a virtude daquele que avalia tudo o que lhe falta aprender e o caminho que ainda deve percorrer, sem jamais ceder aos elogios dos sentidos. O humilde se mantém despreocupado e é naturalmente voltado para os outros e atento ao seu bem estar. Dessa forma consegue exercer suas ações de forma solidária já que, como dizia Galeano, esta consiste numa expressão da humildade. Profissionais com este perfil resgatam a paixão pela arte de cuidar e o sentimento de compaixão na atenção médica, princípios estes norteadores do Movimento Slow Medicine.

“Nada reaproxima tanto os seres humanos que o fato de sentirem medo juntos.” Marguerite Yourcenar – escritora Belga (1903-1987).

A pandemia do covid-19 trouxe como consequência outra epidemia, a do medo. O medo é uma força da natureza e não uma debilidade, tem a função de nos proteger. O problema encontra-se na forma como reagimos a ele. Podemos reagir com pânico, algo que nos paralisa e interrompe nossa capacidade de racionalizar, ou ainda negando o acontecimento, o que nos deixa mais vulnerável ao desconhecido. O ideal seria tomarmos consciência no momento que ele se instala e agirmos perante a ele, com consciência. Toda a situação ou evento catastrófico reduz nosso cérebro de cognição e, desta forma, ficamos limitados em nossa maneira de ver e perceber o mundo e suas nuances. Assim, restringe-se a nossa compreensão e análise à mais fidedigna possível da realidade em questão.

Tivemos na história da humanidade várias pestes e guerras que devastaram grande quantidade de pessoas. O que temos de novo agora e isso contribui para uma maior disseminação do medo é o fator da globalização e da tecnologia. Estas trazem o mundo para muito mais perto de nós, o que antes o homem desconhecia agora adentra em tempo real as nossas casas. O inimigo não mora mais longe, ele invade nossos aposentos e, assim, convivemos metaforicamente com ele.

O medo esconde-se por trás de atitudes agressivas, céticas, do excesso de crítica, do mau humor, da inércia e, mais veladamente, do egoísmo. Em última instância encontra-se o medo de morrer, o qual por trás dele está a silenciosa negação da vida. Ao verificarmos as tradições filosóficas notaremos que se atribui a imortalidade à alma. Nesse entendimento, na morte o que morre é a consciência identificada com a matéria. Podemos passar uma existência sem atribuirmos elevados propósitos aos nossos atos, sobrevivendo a este mundo com automatismos e atrelados ao materialismo. E isto é vida? Ou uma negação do verdadeiro sentido de viver? Viver como ser humano é fazer o que compete a ele; é ter valores, virtudes e sabedoria. Pior do que a morte do corpo é estar respirando sem consciência da vida, é viver sem ter senso de unidade para com tudo que existe; algo como morrer e continuar vivendo.

Cabe-nos, mais do que focarmos na quantidade seja de tempo ou de recursos, refletirmos sobre a aceitação do inevitável, permitindo qualidade de vida, a qual consiste numa questão norteadora para os profissionais da Slow Medicine.

Nasrudin e a peste

A Peste ia a caminho de Bagdá quando encontrou Nasrudin.

Este perguntou-lhe: – Aonde vais?

A Peste respondeu-lhe: – A Bagdá, matar dez mil pessoas.

Depois de um tempo, a Peste voltou a encontrar-se com Nasrudin. Muito zangado, o mullah disse-lhe: – Mentiste-me. Disseste que matarias dez mil pessoas e mataste cem mil.

E a Peste respondeu-lhe:

– Eu não menti, matei dez mil. O resto morreu de medo.

*Conto da tradição sufi.

Com o avanço da medicina grande número de doenças até antes fatais estão sendo curadas ou tendo uma sobrevida maior, o que faz com que o homem viva mais. Além disso, estamos acostumados com uma medicina que nos dá respostas imediatas, protocoladas e com inúmeras revisões sistemáticas para certificar as condutas. Seguindo esse pensamento, no contexto atual de epidemia a medicina e os cientistas estão sendo “provocados” em suas competências para descobrirem como eliminar esse inimigo invisível e ameaçador.

Algumas atitudes desconexas e imponderáveis que vimos nas mídias podem ser frutos da fogueira de vaidades que esquenta os ânimos sem trazer à luz reais soluções. Quem dará a formula mágica para esse momento ficará para sempre na história da humanidade.

Este vírus invisível tratado por nós como um inimigo comum “determinou” que a melhor das condutas consiste no distanciamento e o isolamento social. Levando em conta que somos latinos com uma tendência recorrente à miscigenação e ao convívio social em aglomerações, como lidar com esta questão sem prazo para seu fim e com tantas indagações?

A resposta pode estar no estudo da ética, que segundo o filósofo contemporâneo Cortella pede a você que responda 3 perguntas a qualquer ato que queira fazer: quero,  devo e posso?

“Nem tudo que eu quero eu posso; nem tudo que eu posso eu devo; e nem tudo que eu devo eu quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve.”

Podemos encontrar a ética buscando a verdade. Sim, a verdade é o veículo que nos levará ao encontro da Ética. Esta pode ser vista na Ciência e em instituições idôneas. Lembrando que o Conhecimento gera Confiança, e assim pode amenizar o medo. Urge a necessidade de reconhecer que informação por si só não constitui em conhecimento e que ser inteligente requer Discernimento mais do que de capacidade intelectual. A Slow Medicine acredita que as tecnologias devem servir ao homem e não o contrário, como ocorre quando não selecionamos as informações que nos chegam, levando a um consumo dispendioso de energia, tempo e adoecimento mental.

A mente possui incalculável poder sobre o nosso campo emotivo e, assim como podemos materializar ideias de doença, medos e pânico, também podemos criar ideias de saúde e mantê-las. A epidemia nos traz a consciência da necessidade das medidas de higiene no corpo e da higiene dos nossos demais planos, como o psíquico e o mental. Assim como tomamos banho todos os dias, há que termos o hábito diário de remover as impurezas da nossa mente para termos mais clareza e lucidez. Uma forma de fazer essa limpeza é através de apreciação de música clássica ou através de práticas meditativas, como mindfulness, entre outras modalidades com foco principal na concentração e respiração. A Slow Medicine reforça o papel das práticas Integrativas no cuidado à saúde.

Interessante notar que o vírus dessa Pandemia atinge o pulmão (vias respiratórias), chkra cardíaco, o mundo como antes se apresentava sufocava-nos com seu ar fétido e poluído. As sujeiras éticas e morais impediam aos homens de respirar uma atmosfera de salubridade, condição favorável de saúde física.

Simbolicamente a respiração possui como característica o ato de receber e entregar. Duas maravilhosas sensações e nas palavras de Goethe, “ duas bênçãos”. As línguas antigas utilizam a mesma palavra para “alma” e para “respiração”. Em latim, spirare, inspirar e spiritus, espírito. Por meio da respiração estamos ligados a algo que está para além da forma, através dela a vida flui até nós. É a respiração que nos liga continuamente a tudo o que existe. Com as devidas licenças poéticas, um sopro de vida do espírito.

A espiritualidade age como fator protetor, pois empresta sentido no processo de adoecimento e age como crescimento pessoal frente às intempéries da vida. O espiritual nos aproxima dos cuidados com o corpo, morada de nossa alma, afetando positivamente nosso sistema imunológico, fortalecendo nossas defesas internas. Esses argumentos vem ao encontro do conceito positivo de saúde, um dos princípios da Slow Medicine por ter como foco o auto- cuidado e a resiliência.

Somos pequenos grãos de areia nesse universo imenso (macrocosmos), dentro de um planeta que ainda conserva uma pequenez de consciência, mas, mesmo como grãos de areia (microcosmos), somos à semelhança de Deus, capazes de fazer acontecer o inédito, o transformador para o bem ou para o mal.

O momento de uma Pandemia pode nos abrir essa consciência, é nesse momento de abertura plena que se encontra o SAGRADO. O mesmo já existe dentro de cada um de nós, pois possuímos a centelha Divina que ocupa nosso cerne, nosso âmago, nossa essência.  Não o deixemos adormecido, cabe-nos dar vida e voz a esse chamado.

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À guisa do método empregado na confeccionar dessa matéria

Escrevemos essa matéria há 3 mãos sem nos preocuparmos em diferenciar qual de nós três escreveu, durante o processo criativo, fomos inserindo frases e ideias e cada um modificando ou completando o outro, quem nos conhece talvez identifique a fala que representa cada um, o que vamos registrar nesse texto foi uma experiência real, uma simbiose plena e gratificante e acreditamos isso está imbuído em cada palavra ofertada para nosso leitor.

Quem somos nós:

Jaqueline Doring Rodrigues: médica geriatra com especialização em Cuidados Paliativos. Trabalha no Hospice Erasto Gaertner em Curitiba, Paraná. Acredita que a primeira das Ciências é o cuidado da alma e a segunda, o cuidado do corpo e que no decifrar a doença como linguagem da alma estamos diante à verdadeira cura.

Pessanha Júnior:Idoso jovem (61 anos).Graduado em Medicina e Filosofia.Casado com Gilena Luz há mais de três décadas.Pai de Luísa, Laura e ainda de Pandora, a irmã canina delas.Mantendo sempre a indignação em alta, sonha com a diminuição das desigualdades sociais, nossa maior doença, e como foco tão somente no ESSENCIAL. Na busca pela Suficiência, gostaria de ser lembrado como um EDUCADOR. E ao final de tudo, fazer falta.

Vera Anita Bifulco: psicóloga, psicooncologista, mestre em Cuidados Paliativos pelo Cedess/ Unifesp. Teve a oportunidade de conviver e trabalhar com o Professor Marco Tullio de Assis Figueiredo no ambulatório de Cuidados Paliativos, fato marcante em sua trajetória profissional. É co-autora de três livros, “Câncer Uma Visão Multiprofissional” I e II, Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde” e “Cuidados Paliativos – um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais. Vera tem três filhas, um neto e uma neta maravilhosos, gosta de viajar, de música, cinema e livros. Como legado, gostaria de ser lembrada pelo meu sorriso e meu amor pela vida.

PS: A gravura que ilustra o post é da artista Reali Servadei.

 

 

 

3 Comentários

  1. Que texto inspirador!!!
    Que o Sagrado e Dono de toda vida acenda em mais corações essa chama do verdadeiro significado do existir e nos ajude a materializar essas verdades em atos de justiça…
    Admirável!!!

  2. Que bom, Rosângela. Ficamos felizes. Um momento que nos pede boas reflexões e discernimento dia após dia. Abraço.

  3. Leitura maravilhosa e essencial para o momento especial que estamos vivendo,com essa pandemia estamos muito ansiosos e ávidos de palavras de consciência e realidades ….. Parabéns, ao menos em mim tocaram meu coração.❤️

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