Uma conversa com Marco Bobbio

junho 16, 2019
2 comment
Visitas: 2524
10 min de leitura

Por José Carlos Campos Velho:

O Movimento Slow Medicine surgiu na mídia brasileira, pela primeira vez, com maior impacto, quando da publicação da entrevista com Marco Bobbio nas páginas amarelas da revista Veja, em dezembro de 2014. Até então, o movimento era praticamente desconhecido no Brasil. Um artigo no jornal gaúcho Zero Hora, publicado em 2012, escrito pelo cardiologista Flávio Kanter, intitulado “Vamos conversar, doutor”, havia feito referência à expressão – “fala-se em slow medicine, uma medicina sem pressa(…)”. Pelo esforço do Prof. Dario Birolini, que havia tomado contato com as ideias da Slow Medicine através de um livro que lhe havia sido presenteado por um paciente, “Il malato immaginato”, o nome de Marco Bobbio passa a ser conhecido do público brasileiro, após a tradução do seu livro para o português, publicado pela editora Bamboo, com o nome “O doente imaginado”. A primeira visita de Bobbio ao Brasil data desta época, quando proferiu conferências e participou de vários eventos relacionados à divulgação de seu livro, em algumas capitais brasileiras. O sobrenome Bobbio era conhecido – seu pai Norberto Bobbio, uma das grandes personalidades intelectuais italianas no século XX, já havia visitado o Brasil, quando ocorreram os primeiros passos para a redemocratização do país, ainda na década de 70, durante os estertores do regime ditatorial militar. Norberto Bobbio era uma voz de equilíbrio e ponderação à época  e suas palavras poderiam contribuir para que o debate do valor da democracia viesse à tona, pois o seu papel, na longa vivência que tinha da política italiana ao longo do século XX, permitia-lhe que dispusesse de informações para contribuir com a reconstrução do processo democrático brasileiro.

Desde então, Marco Bobbio já esteve em outras 2 ocasiões no país, participando ativamente da construção do Movimento Slow Medicine no Brasil – o lançamento da iniciativa em outubro de 2016, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, recebeu especial atenção por tê-lo como palestrante convidado. Além de divulgar a história e a filosofia da Slow Medicine, Bobbio é um dos porta-vozes, na Itália, da Campanha Choosing Wisely, lá denominada “Fare di piu non significa fase meglio”, um dos projetos encampados pela Associação Italiana de Slow Medicine. Suas andanças de norte a sul do país o colocaram como um mentor do Movimento Brasileiro, e permitiu o estreitamento dos laços entre o Movimento Slow Medicine Brasil e a Campanha Choosing Wisely Brasil. Esta pequena explanação já permite que tenhamos uma noção da importância de Marco Bobbio para a Slow Medicine, tanto na Itália, quanto no Brasil.

Foi em sua casa, em Turim, na Itália, que pudemos conversar sobre Slow Medicine e as questões que o movimento vem enfrentando atualmente. A iniciativa brasileira hoje configura-se como a segundo maior esforço coletivo para divulgação dos princípios e da filosofia da Slow Medicine no mundo, tendo à frente o movimento italiano.

Bobbio vive com sua esposa Lucia em Pino Torinese, uma comuna vizinha da cidade de Turim, que se estende por um monte, coberto por um densa floresta, no alto do qual encontra-se o observatório astronômico da cidade. Cercado de livros, num ambiente de tranquilidade e silêncio, somente quebrado pelo canto dos pássaros e pelos latidos da cadelinha Vicky, Bobbio hoje dedica-se a escrever e divulgar, na Itália e no mundo, a filosofia da Slow Medicine. Atualmente aposentado, trabalhou durante 30 anos como cardiologista em Turim e posteriormente mais 8 anos como diretor do serviço de Cardiologia do Hospital de Cuneo, uma cidade próxima, também na província do Piemonte. Dedica-se com afinco ao cuidado de sua horta e de seu pomar. Vive uma vida simples – cuida, juntamente com Lucia, de sua alimentação, onde a maior parte dos ingredientes vegetais são produzidos por ele mesmo, respeitando a sazonalidade dos produtos. Com sua esposa, seus 3 filhos e netos, constituem uma legítima família italiana, com apreço pelas caminhadas nas montanhas, pelo ciclismo, pela cultura, pelas viagens e pela sustentabilidade  ambiental – sua casa se utiliza de energia solar, aquecimento à lenha no inverno e todo o lixo é reciclado, sendo os resíduos orgânicos descartados em uma composteira, para serem utilizados posteriormente como adubo.

Na sala de sua casa, numa manhã ensolarada de domingo, conversamos longamente com Marco Bobbio. Não é o objetivo desta matéria uma entrevista nos moldes tradicionais, mas a narrativa de uma conversa, onde as suas concepções fluíram de maneira leve e descontraída.

O que é afinal Slow Medicine? A Medicina contemporânea caracterizaa-se pelo controle e mesmo pela cura de doenças que até recentemente eram fatais, fato que, conjuntamente com outras questões que melhoraram a saúde da coletividade, como saneamento básico, melhores condições de vida e de nutrição, vacinação e a evolução dos cuidados médicos, acompanhou-se de um aumento da longevidade. Porém, ao mesmo tempo, o uso excessivo de recursos médicos acabou se tornando um problema de saúde pública. À semelhança da Fast Food, vivemos uma época de uma Fast Medicine, que se utiliza de forma pouco racional dos recursos existentes, acreditando que o novo sempre é melhor, de que fazer mais em saúde traz melhores resultados, de que as intervenções diagnósticas e terapêuticas são sempre seguras e que existe um remédio para tudo. São os 7 pecados da Fast Medicine. Porém, existe outra maneira de se utilizar destes recursos, de uma forma mais ponderada e respeitosa, mais justa, oferecendo o mesmo cuidados a todas as pessoas; uma medicina sóbria, que age gradualmente e com moderação. 

Na Itália a Slow Medicine hoje tem uma penetração consistente entre profissionais de saúde , através de sua colaborarão com várias entidades e centenas de palestras e eventos que contam com a participação de seus membros em todo o país. A Campanha Choosing Wisely, executada pela Associação Italiana de Slow Medicine, também foi uma ferramenta que contribuiu para a dissminação de sua filosofia. Uma questão colocada por Bobbio é que o movimento na Itália ainda é bastante intelectualizado, e seus conceitos ainda não foram concretamente  assimilados  pelos pacientes e pela população, embora esforços sejam feitos neste sentido. Para os pacientes permanece a ideia de que fazer mais é melhor, sendo as concepções da Slow Medicine são contra-intuitivas, o que aponta na direção de uma necessária mudança de paradigmas culturais. E isso demanda tempo, dedicação e trabalho.

A Slow Medicine pode se transformar num movimento internacional, e a iniciativa brasileira vem tendo um papel importante neste aspecto, juntamente com o movimento italiano. Existem trabalhos embrionárias na Holanda e Japão. Nos EUA , vários escritores e cientistas tem se utilizado da expressão, bastante focados no que se refere à velhice e questões de final de vida, onde o desaceleramento do processo de tomada de decisões se faz necessário e (quase) urgente. Na Itália a Slow Medicine é entendida de uma maneira mais abrangente, podendo abarcar todo o span vital , incluindo todas as idades, desde a gestação até a morte.

O envolvimento pessoal de Marco Bobbio com a Slow Medicine deu-se posteriormente à fundação da Associação – na qual ele hoje é o secretário geral, cargo que passou a ocupar desde o encontro ocorrido em Ferrara, em 2014. Dois dos fundadores do movimento eram membros do Movimento Slow Food e se questionaram – “porque não Slow Medicine?”. Bobbio trabalhava como diretor do Serviço de Cardiologia do hospital de Cuneo, e já era conhecido por sua postura crítica em relação aos excessos da medicina contemporânea, e uma prática clínica mias cautelosa e ponderada..

Ele vem acompanhando o movimento brasileiro de perto. Marco Bobbio particapará do II Encontro Brasileiro de Slow Medicine em setembro, no dia 21, na Associacão Paulista de Medicina, em São Paulo. Sua expectativa, essencialmente, decorre da divulgação da iniciativa, apontando que é o momento de envolver mais profissionais, com mais pessoas discutindo , refletindo e trocando experiências. Há necessidade de viralizar as ideias da Slow Medicine, “propagar seus conceitos como se fosse uma infecção, uma infecção do bem”, para que a filosofia da Slow Medicine passe a fazer parte da forma de pensar dos médicos.

Seu novo livro , Troppa Medicina, que será lançado no Brasil em setembro de 2019, através de uma  colaboração do Instituto Norberto Bobbio, pode ser um dos agentes desta viralização. “O doente imaginado” já foi muito bem aceito, particularmente entre médicos. Troppa Medicina pode ter um alcance maior, entre o público em geral, pois sua línguagem é mais simples e acessível. A perspectiva é de uma mudança da relação das pessoas com  seus médicos, com uma participação mais ativa, compartilhando decisões sobre sua própria saúde. Bobbio acredita que uma verdadeira epidemia se avizinha: a do “Worried Well” – um pouco pela nossa própria ação como médicos, que acabamos convencendo as pessoas que elas estão doentes ou podem ficar doentes, e para evitar isso, precisam fazer exames e provavelmente tomar medicamentos frequentemente ou mesmo continuamente.

Bobbio vê com bons olhos a participação de estudantes de Medicina no Movimento. Eles precisam ser envolvidos e absorver os conceitos da Slow Medicine em sua formação. A tendência é que eles sejam seduzidos pela tecnologia, pela especialização e inseridos em um sistema de trabalho que os transforma em “médicos fast”. Ele já proferiu inúmeras palestras para estudantes e as ideias da Medicina sem Pressa são muito bem aceitas, pois são conteúdos aos quais eles em geral tem acesso restrito na graduação e residência. O envolvimento de estudantes tem acontecido na Itália. Ao tomar conhecimento da formacão de uma Liga Acadêmica de Slow Medicine no Brasil e do projeto “Ajude com Cartas”, ficou bastante entusiasmado, com a ressalva de que a questão científica não deve deixar de ter um papel importante na reflexão mais ampla do papel da Slow Medicine junto aos estudantes.

PS: Podemos disponibilizar uma cópia em PDF da entrevista de Bobbio nas páginas amarelas da Veja, caso haja interesse. Entre em contato com o email [email protected] .

(BOBBIO, Marco. Entrevista: Moderação e serenidade. Veja: páginas amarelas. Edição 2402 – ano 47 – nº 49, 3 dez. 2014)

2 Comentários

  1. Síntese perfeita. Nos veremos em San Paolo em setembro.
    Muitas felicidades a todos os amigos da Slow Medicine Brazil, Marco

  2. Síntese perfeita. Nos veremos em San Paolo em setembro.
    Muitas felicidades a todos os amigos da Slow Medicine Brazil, Marco

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Newsletter Slow Medicine

Receba nossos artigos, assinando nossa
newsletter semanal.
© Copyright SlowMedicine Brasil. todos os direitos reservados.