Vitamina D : sem pressa de prescrever

abril 23, 2018
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Por Suzana Vieira:

Falar sobre vitamina D não é uma tarefa fácil diante de todos os artigos publicados. Até o final de 2017, cerca de 13.000 artigos foram indexados nos últimos 5 anos sobre vitamina D em humanos, dos quais 2700 só sobre suplementação. Se há pouco mais de uma década atrás só se ouvia falar em vitamina D nas doenças ósseas (pelo menos na endocrinologia), como raquitismo, osteomalácia e osteoporose, hoje temos publicações desde o diabetes na endocrinologia, até doenças cardiovasculares e esclerose múltipla, câncer, ampliando e muito os potenciais benefícios da vitamina D nas mais diversas especialidades. Esses são os chamados efeitos extraesqueléticos dessa vitamina. A utilização da vitamina D para doenças não ósseas ainda gera controvérsia.

Em 2011, foram publicadas recomendações de diversas entidades em relação à deficiência de vitamina D, entre elas a da Sociedade Americana de Endocrinologia, vigente até hoje. Conforme essa diretriz, o rastreamento de deficiência de vitamina D seria recomendado para indivíduos com fatores de risco para tal deficiência. Essas recomendações foram endossadas Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, e recentemente pela Sociedade Brasileira de Patologia Clínica juntamente com a Choosing WiselyA reposição seria recomendada com o objetivo principal de evitar quedas e fraturas ósseas.

Segundo a diretriz de 2011, os níveis normais da vitamina D (250HD) estariam seriam iguais ou superiores a 30ng/mL; entre 20 e 30ng/mL caracterizariam insuficiência e 250HD < 20ng/mL seriam compatíveis com deficiência.

De acordo com esses números de corte, 20 a 100% dos idosos nos EUA, Canadá e Europa seriam deficientes em vitamina D, ou seja, a normalidade estatística seria a exceção.  De acordo com o livro do Dr. Marco Bobbio – O Doente imaginado– a normalidade estatística é definida determinado resultado está num intervalo de valores em que se encontram 95% da população. Essa definição pode sofrer influência dependendo das características da população.

No Brasil, estudos mostram valores inadequados de Vitamina D em 85% dos idosos moradores na cidade de São Paulo, em mais de 90% dos idosos institucionalizados e em cerca de 50% da população de jovens saudáveis.

Até o momento das publicações de diretrizes em 2011, os níveis de vitamina D que definem deficiência ainda são controversos. Esses números foram oriundos de estudos que se baseiam na resposta da administração da vitamina D sobre a normalização do marcador intermediário, ou desfecho substitituto: a normalização do paratormônio (PTH). Faltavam estudos clínicos que pudessem avaliar os desfechos clínicos importantes como quedas e fraturas ósseas.

Estudos começaram a ser publicados avaliando a suplementação de vitamina D no risco de queda em idosos. A controvérsia da suplementação da vitamina D faz parte da história do Slow Medicine, registrada no post como começou a proposta do movimento Slow Medicine no Brasil.  Esse estudo que surpreende pelos seus resultados:  os grupos que receberam doses maiores de vitamina D ou associada ao calcifediol conseguiram atingir os valores preconizados de 30 ng/mL, entretanto não melhoram significativamente a performance física e ainda foram associadas a risco de quedas maior quando comparadas ao grupo de dose baixa (respectivamente – 66,9%, 66,1% e 47,9%). Os autores discutem que o mecanismo pelo qual as altas doses de vitamina D permanecem incertos, contudo, não seria justificado por um aumento da atividade física e com isso aumentando a oportunidade de queda. Como conclusão desse artigo, os autores aconselham a manutenção da suplementação de vitamina D conforme preconizada pelo Instituto de Medicina (800 UI/dia) em detrimento de doses mais altas.1

Sabe-se que os idosos são um grupo de alto risco para fraturas, havendo recomendação de suplementação de cálcio e vitamina D para diminuir esse risco.  Altas doses de vitamina D para manter os níveis séricos de pelo menos a 30ng/mL têm sido recomendados para essa população.

Ampliando o olhar para além do exame complementar e ainda considerando que o risco de fratura está ligado a uma gama de fatores que inclui o risco de quedas, particularmente na população idosa, um outro estudo vale a pena ser comentado. Tricco e colaboradores destacaram o exercício físico como a intervenção mais efetiva para prevenir sobre danos relacionados às quedas, fraturas e fraturas de quadril em idosos abaixo dos 80 anos. Outras intervenções associadas também foram úteis em reduzir as fraturas, tais como como avaliação e tratamento da visão, avaliação do ambiente, tratamento da osteoporose e suplementação de cálcio e vitamina D. As intervenções reduzem a risco de quedas, principalmente quando alinhados com as necessidades dos idosos, conforme os autores. Esse resultado está alinhado terceiro  princípio da Slow Medicine, o da autonomia e do auto-cuidado, que contempla a estratégia das “decisões compartilhadas”. A chave da questão são os valores, expectativas e preferências do paciente. Nela estão envolvidos o ambiente de cuidados do paciente, sua família, vizinhos, amigos e outras fontes de suporte ou apoio”.

Os valores de normalidade ainda permanecem em discussão e o assunto não está encerrado. No fim do ano passado, a Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML) e a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) recomendaram novos intervalos de referência para vitamina D, sendo que níveis séricos acima de  20 ng/mL são desejáveis para população saudável (até 60 anos);e entre 30 e 60 ng/mL é o valor recomendado para grupos de risco.

Esse é um exemplo de outro tipo de normalidade, a normalidade terapêutica, também comentado no livro do Dr. Marco Bobbio. Os valores considerados normais variam ao longo do tempo. Isso aconteceu com a glicemia em 2003 e mais uma vez com a pressão arterial no ano passado, cujos limiares foram reduzidos ao longo do tempo, aumentando o número de doentes. Como alerta do Dr. Bobbio: “Porém quando se abaixa o limiar para decidir o início ou não de um tratamento, reduzem-se os benefícios, mas permanecem inalterados os custos econômicos e os riscos de efeitos indesejados. Paralelamente, aumenta o número de pessoas que procuram médicos para pedir assistência e orientações e, como consequência, aumentam os lucros daqueles que aplicam exames diagnósticos e produzem medicamentos”.

No caso da vitamina D, se por um lado a nova faixa para normalidade terapêutica possa favorecer uma redução na prescrição dessa vitamina, por outro lado, a publicação de benefícios além metabolismo ósseo e estimulação da dosagem de rotina da vitamina Dpodem configurar um exemplo de Disease Mongering– mercantilização da doença – é um termo utilizado para aumentar as fronteiras da doença e agressivamente promover campanhas de sensibilização para expandir o mercado para tratamento, entre elas definir uma doença da qual um grande número de pessoas a tem.

Por ora, seguimos ainda ouvindo muito sobre vitamina D. O tempo certamente dirá se a história da vitamina D será diferente em relação à história não muito distante da relação entre vitamina E e doença cardiovascular. A vitamina E mostrou vários benefícios in vitro e em modelos animais que não se reproduziram nos ensaios clínicos em humanos. Contrariamente aos dados iniciais, a vitamina E mostrou aumento de mortalidade e Associação Americana de Cardiologia se posicionou contra seu uso em suplementos, mas recomentou a ingestão de antioxidantes através de fontes alimentares. Vale o dito popular … “vitamina se compra na feira,  e não na farmácia… de preferência tomando um pouco de sol….”.

  1. BISCHOFF-FERRARI, H. A.et al. Monthly High-Dose Vitamin D Treatment for the Prevention of Functional Decline: A Randomized Clinical Trial. JAMA Intern Med, v. 176, n. 2, p. 175-83, Feb 2016. ISSN 2168-6114. .
  2. TRICCO, A. C.  et al. Comparisons of Interventions for Preventing Falls in Older Adults: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA, v. 318, n. 17, p. 1687-1699, 11 2017. ISSN 1538-3598.

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Suzana Vieira: Nasci no interior de Pernambuco, fiz minha graduação em Recife e vim para São Paulo há quase duas décadas para cursar as residências médicas e doutorado e por aqui fiquei. Ao término do projeto acadêmico, tornei-me mãe da Helena, tarefa nobre que não se aprende nos livros. No fim de 2015, após uma retomada de rota profissional, comecei a escrever sobre meus estudos na área de endocrinologia, e no ano seguinte nasceu um outro “filho”: o blog. Viagens, natureza e animais (principalmente gatos) são outras paixões que recarregam minhas energias.

 

5 Comentários

  1. Li no CDC ( Atlanta-Estados Unidos) uma recomendação de que suplementação de Vitamina D é mercantilização da Vitamina D pelos laboratórios, e recomendam que as pessoas tomem 15 minutos de sol nos antebraços , para a pele sintetizar a Vitamina D.
    Outro assunto é a suplementação de cálcio em mulheres , esse estudo ocorreu na Alemanha, e mostrou um índice de infarto do miocárdio muito grande em 30.000 mulheres, e os autores pedem que os ginecologistas não façam a reposição de cálcio em mulheres na menopausa.

  2. Adorei, artigo bem escrito, apropriado ao nosso tempo, a nossa modernidade líquida exaustivamente descrita por Zygmund Bauman, onde começamos tb a ser afetados dentro da ciência.

    • Olá, Rubens! Realmente, vivemos um tempo de verdades que posteriormente são até contraditas, como bem disse, uma “ciência líquida”. O tempo pode ser nosso aliado para ver quais são os achados e terapias que realmente se consolidam e sempre desconfiar de novas panaceias.
      Agradeço pelo seu comentário.

  3. Muito bom o artigo Suzana!
    É preciso muita atenção e cautela com os modismos de cada tempo, pois há muitos outros interesses envolvidos muitas das vezes nestas “propagandeadas” premissas.
    Na minha area de Neurologia, já vi casos de pacientes que chegaram a não receber o tratamento indicado para esclerose múltipla em detrimento de suplementação de altas doses de vitamina D, o que incorre em imperícia e negligência médica; fato este condenado pela Academia Brasileira de Neurologia.
    Sempre vale a pena lembrar sobre o bom senso nas indicações de terapêuticas e propedeuticas em medicina, visando o bem do paciente – já dizia Hipócrates ‘primum non non cere’.
    Abcs, Nathalia

    • Obrigada, Nathalia!
      Sim, vemos o uso indiscriminado da vitamina D para muitas doenças e muitas delas sem evidências científicas de boa qualidade. Muito bem lembrado a frase do Hipócrates, a qual é um dos princípios da Slow Medicine: segurança (e bom senso) sempre!
      Abraços,
      Suzana

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