O Alienista

janeiro 4, 2020
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Por Sylvia Mello Silva Baptista:

Um colega me alertou: O conto “O Alienista”, de Machado de Assis  conversa com a Slow Medicine. Aguçou minha curiosidade e lá fui eu conferir. Um prazer voltar a Machado e reler essa pequena e deliciosa obra. Quem não se lembra de Simão Bacamarte e sua inesgotável sede de ciência?

“A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo”.  É com esse afã que o nosso protagonista começa a busca de um remédio universal e foca sua vida na demarcação dos limites entre a razão e a loucura. O mal do único, a unilateralidade da visão, o “monoteísmo” temático que impõe em suas pesquisas acabam por tomá-lo por completo, e entende a vida pelo viés literal. Constrói então uma Casa Verde na Rua Nova. A novidade, no entanto, está mais no burlesco da ideia do que em alguma inovação médica. E verde, ou não maduro, para não dizer ingênua e equivocada, é também a qualidade da teoria que Bacamarte constrói.

Todos os poderes que compõem uma cidade em sua totalidade se fazem visíveis na história. Estão ali o padre, o político, o boticário, o médico, além dos habitantes de Itaguaí, ex-pacata cidade até a chegada de Bacamarte, ou, ousaríamos dizer, da Ciência. Ao avançar do conto vemos crescer a sua sede de descobrimento, disfarçada de modéstia. Na mais pura intenção científica, declara que deseja “estudar profundamente a loucura, classificar-lhe os casos, descobrir a causa do fenômeno e o remédio universal”. Tudo isso sob a arrogância do discurso que pregava a intenção de prestar um bom serviço à humanidade. O que não se faz em nome de um pretenso bem? Pois o médico deu início a um furor classificatório, encerrando na Casa Verde quatro quintos do lugarejo. “A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”, decretou. Acreditava assim, ter delimitado os territórios da razão e da loucura, conforme almejara, e não se dá conta do que comete ao fazê-lo.

Segundo os gregos antigos, húbris, ou hybris, é o termo dado à ultrapassagem do métron, a medida entre o humano e o divino. Cometer hybris é, portanto, passar das medidas, na arrogância de se imaginar acima do que se é. Não há nada que possa ser mais terrível e passível de represálias do que o homem arvorar-se a cobiçar a divindade. Bacamarte não fez senão isso. Tudo era visto como loucura e ele ocupava a posição do são, do paladino da saúde. Carl Gustav Jung afirmou em sua época – final do século XIX até meados do século XX -, que os deuses viraram doenças, os deuses entendidos mitologicamente como padrões de funcionamento psíquico, não mais compreendidos pela sociedade como metáforas que podem trazer uma ampliação da consciência de nós mesmos, mas como realidades concretas, cujos nomes estão, hoje, nas rodas de conversa, nos consultórios, na mídia: depressão, ansiedade, ideação suicida, transtorno maníaco-depressivo etc, etc.

E talvez aí possamos começar a enxergar a ponte entre O Alienista e as questões que nos coloca o movimento Slow Medicine e sua chamada à reflexão. Não seriam os manuais de medicina (DSM, CID) tentativas bacamartianas de padronização das doenças, tendo suas atualizações em poucos anos ultrapassado em muito a ideia inicial do compêndio servir como orientação ao médico? Não estaria a medicina, a psiquiatria em particular, cometendo hybris ao normatizar seus pacientes e classificá-los rapidamente em rótulos aprisionadores, em casas verdes, diagnósticos que definem as pessoas e as encerram num olhar unilateral e limitante que passa a lhes  acompanhar dali em diante, às vezes por toda a vida? Seriam as descobertas tecnológicas de ponta sempre as melhores e mais indicadas, simplesmente por serem mais novas, mais atuais?

Destaco um trecho do livro “O doente imaginado”, de Marco Bobbio, (Bamboo Editorial, 2016) médico cardiologista italiano, especialista em estatística médica, e autor de vários livros na área:

Muitos  médicos, munidos das melhores intenções, fazem-se heróis da prevenção ao alertar pessoas ainda sadias para o risco de encontrarem problemas patológicos. Para o bem do paciente (grifo meu), obviamente, apresentam-lhe doenças e incapacidades, com a inevitável consequência de um pacote de medidas (que muitas vezes compreendem também a ingestão cotidiana de alguns medicamentos) feito para evitar danos futuros. (…) Não podemos pensar que, para todos os indivíduos, e em qualquer momento da existência, o prolongamento da vida seja o único objetivo a perseguir. Existem outros parâmetros, como a percepção de si mesmo, sadio ou doente, os custos econômicos, os investimentos pessoais, os efeitos colaterais indesejados que cada indivíduo percebe de modo diferente. (p.45)

“Para o bem do paciente” Simão Bacamarte seguiu em sua monomania, imaginando doentes e doenças, e presumindo-se o curador. Em artigo publicado aqui neste site (A psicologia e o movimento Slow Medicine), cito uma ideia de C.J. Groesbeck que me parece caber nesta discussão:

É a imagem do médico como “milagroso” que tende a levar a esta situação (serviços e curas não cumpridas). A expectativa de que a pessoa do médico, agindo externamente, mesmo com a ajuda de toda tecnologia possa ser capaz de efetuar a cura, tanto quanto, ou no lugar, do “médico interior”, é um grande erro de cálculo (“A imagem arquetípica do médico ferido”, 1983, p.78).

Na mais explícita revelação de um princípio fundamental da medicina, que afirma que ela trata de verdades transitórias, Machado nos presenteia com a imagem de Bacamarte migrando para o polo oposto de suas crenças: repentinamente liberta toda a população reclusa na Casa Verde e, depois dos ânimos acalmados, são as pessoas diagnosticadas como estando em perfeito gozo de suas capacidades mentais que passam a ser reclusas. Assim, cria galerias para os modestos, os tolerantes, os verídicos, os leais, os sinceros etc, ditos loucos,  categorizados por estas perfeições morais. Segue a terapêutica: incutir no doente o sentimento oposto daquele que nele se sobressaísse. Em cinco meses e meio a Casa Verde se esvaziou e todos se curaram. No entanto, um insight lhe trouxe uma nova revelação: Na verdade, teria descoberto o perfeito desequilíbrio do cérebro. Todos que curara, eram desequilibrados como os outros. E assim, não havia loucos em Itaguaí. Não tardou a considerar-se como exemplar de perfeito equilíbrio mental e moral e, ato contínuo, recolheu-se, ele próprio à Casa Verde: “A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática”.

Há muitos ângulos por onde podemos olhar essa história. Ela foi lembrada como alegoria contrastante a um movimento que prima por uma retomada da escuta e da dedicação do médico ao paciente sem a pressa e os interesses econômicos e mercadológicos que têm atravessado essa ciência nas últimas décadas. Talvez ela nos traga a ideia de que a busca incessante pela cura dos males a que a medicina se propõe deva considerar mais reflexões sobre as noções de equilíbrio/desequilíbrio e de perfeição.

Estamos mais no campo de Dioniso do que de Apolo, se podemos pensar em termos mitológicos. Apolo, o deus da cura, prega uma distância, uma assepsia, uma impessoalidade que foram se desvirtuando ao longo dos anos e tornando o atendimento ao paciente “fast”, rápido, sem contato, esvaziado. Estamos vivendo um tempo de adoecimento do deus. O deus virou doença. Já Dioniso, o deus do corpo, da comunidade, da proximidade, e que está sempre relacionado a Apolo, clama por espaço dentro desse cenário enfermo. A discussão é longa.

Lynn Payer, autora de Disease Mongers, citada por Bobbio, denuncia algumas práticas que lembram muito nosso herói: “transformar sintomas comuns em problemas médicos; fazê-los parecer perigosos; propor terapias das quais se exaltam os benefícios e subestimam-se os riscos”. Parece familiar?

Bacamarte acreditou que deveria escolher entre a perfeição ou a imperfeição absolutas. Desejou ter as fronteiras da loucura impecavelmente  nítidas e esqueceu que a vida não se define em “ou – ou”.  Somos todos desequilibrados e imperfeitos, e seu empenho unívoco de trazer uma solução ao que se conjuga no mistério erra de saída. Machado nos alerta para esse desejo da universalidade do medicamento como uma lição. O singular está no cidadão, na pessoa, no paciente e não na medicação que padroniza todos como iguais ou “normais”. A Medicina sem Pressa vem tentando trazer à consciência esta simples e tão profundamente importante ideia, afirmando e reafirmando que é preciso que se receba o paciente que busca ajuda com o olhar munido de empatia, de escuta amorosa, de dedicação de tempo, de curiosidade, de pesquisa verdadeira baseada na reflexão, sempre mirando o humano que está ali.

Em tempo, Itaguaí segue harmônica, com seus desequilíbrios e imperfeições preservados.

Uma pergunta para nos cutucar: quais as hybris que cometemos em nome do bem comum e da ciência?

Dezembro de 2019

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Sylvia Mello Silva Baptista formou-se em Psicologia pela PUC-SP. É analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, professora de cursos abertos e de formação da SBPA, coordenadora do MiPA, Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica da Clínica da SBPA. Como escritora, publicou “Maternidade e Profissão: Oportunidades de Desenvolvimento”, “Arquétipo do Caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas”, “Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas” e “Ulisses, o herói da astúcia”, todos editados pela Editora Casa do Psicólogo.

Lançou seu primeiro romance – “Segunda Pedra” – em novembro de 2012 pelo selo Edith.

Email: [email protected]

1 comentário

  1. Sylvia que bordado lindo sua reflexão, e nesses tempos de Kits, tratamentos milagreiros , de incertezas e de profissionais endeusados ou heróis, reconhecer o conto desse grande escritor Brasileiro como material precioso à refletir a pratica medica,gratidão a todos slow medicine , filosofia acolhedora e “nesses bordados” reviso minhas entradas e saídas da casa verde de Bacamarte .

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