O estilo Slow Medicine de vida

novembro 28, 2023
3 comment
Visitas: 501
6 min de leitura

Por Ana Coradazzi

“Por saúde, quero dizer a possibilidade de levar uma vida completa, adulta, viva, em que eu esteja em estado de respirar em comunhão com aquilo de que gosto.”

Katherine Mansfield

Quando Seu Hélio, aos 96 anos, levantou-se sem ajuda de sua cadeira, subiu sozinho na maca para ser examinado, respondeu a todas as perguntas com lucidez e cordialidade, e exibiu tranquilamente a “lista” de medicações em uso (com apenas um comprimido para controle da pressão arterial), não pudemos deixar de sorrir. Imaginamos a vida por trás do rosto cheio de rugas e dos dedos calosos, nos perguntando como ele tinha chegado até ali tão saudável, tão bem-disposto. Na verdade, fizemos esta pergunta a ele mesmo, e ouvimos a resposta sem titubeios: “É porque eu tive boas pessoas ao meu redor a vida toda. Elas me carregaram até aqui.”

Não chega a ser uma grande novidade que as relações sociais que cultivamos podem contribuir para nossa longevidade. Há inúmeros relatos e estudos de como a vida em comunidade, a fé e a sensação de ter um propósito de vida têm impacto em nossa saúde, tanto quanto nossos hábitos alimentares, a prática de exercícios físicos e a forma como controlamos o estresse. Mas fiquei pensando que Seu Hélio se referia a algo mais profundo. Ele falava de escolhas, em especial da escolha de quem caminhará ao nosso lado pela vida.

Você não sente e não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo*

Vivemos um tempo estranho em que nos acostumamos a seguir (ou tentar seguir) orientações profissionais para tudo. Há profissionais que determinam o que devemos comer, que tipo de exercício praticar, quantas horas de sono são necessárias, quanto de água temos que ingerir, quais as técnicas úteis para lidar com o estresse. E nós, obedientes que somos, tentamos encaixar todas essas regras nas 24 horas do dia, uma após a outra . A verdade é que não conseguimos adotar nem mesmo uma fração delas, ainda que sejamos incrivelmente esforçados. Frustrados, muitos de nós sucumbem, seguindo a lógica de que, se não conseguirmos fazer uma mudança radical em nosso estilo de vida, não teremos qualquer benefício. Ou fazemos tudo, ou não teremos nada. Talvez seja justamente esse nosso erro: em vez de buscarmos um caminho único, perfeito, é provável que seja mais eficiente encontrar nosso próprio caminho para uma vida saudável, um caminho sustentável e que faça sentido para nós. O caminho do meio, bem ao estilo da Slow Medicine.

Diga-me com quem andas e te direi quanto viverás

Escolhas saudáveis não precisam ser extremas (aliás, escolhas extremas nem costumam ser muito saudáveis). Também não precisam ser definitivas. Na verdade, o ideal é que incorporemos bons hábitos aos poucos, nos afeiçoando a eles, celebrando-os, tornando-os naturais em nossas vidas. E é aí que as pessoas que caminham conosco importam: viver num ambiente onde a alimentação é pouco saudável, o sedentarismo é a regra, o tabagismo é “glamuroso”, as relações humanas são negligenciadas e/ou a medicalização da vida é normalizada dificulta – e muito – a adoção dos hábitos que nos farão viver mais e melhor. Talvez seja a isso que Seu Hélio se referia: se estivermos cercados de pessoas cujos hábitos de vida são saudáveis, teremos boas chances de nos “contaminarmos” com eles. É o que acontece nas Blue Zones, regiões do planeta em que a expectativa de vida é muito superior à do restante do mundo. Nesses lugares, o “normal” é manter-se ativo, alimentar-se bem, manejar adequadamente o estresse, priorizar as relações familiares e sociais e cuidar uns dos outros.

A chave pode estar na natureza

É claro que não seria razoável pensar que todos deveríamos nos mudar para uma Zona Azul para garantir uma vida mais saudável, longa e feliz. Mas temos escolhas importantes que podem ser priorizadas para aumentar nossas chances de adotar um estilo de vida mais saudável, e uma delas é nos envolvermos com pessoas mais saudáveis. Podemos buscar vínculos de amizade em grupos onde a atividade física é valorizada e corriqueira (e nos divertirmos com isso). Podemos sentar para almoçar com aquele colega cuja alimentação é mais saudável do que a nossa (e aprender como ele organiza sua rotina alimentar). Podemos escolher passar nossas férias ou fazer passeios de final de semana em lugares onde a natureza nos abrace o tempo todo, ajudando a manter a conexão com o que precisamos e encontrando pessoas que também valorizam ambientes ao ar livre. É um movimento de resistência, de questionar o que fazemos e por que fazemos, escapando da armadilha do automatismo da vida de hoje. É preciso “furar a bolha”. Após algum tempo (provavelmente não muito), aprendemos a identificar com facilidade o que nos faz mal e, principalmente, o que nos faz bem, melhorando nossas vidas sem sequer pensar muito nisso. A beleza dos bons hábitos é que eles são tão ou mais contagiosos que os hábitos ruins.

Saúde não é algo que precisa ser associado a sofrimento e grandes sacrifícios. Ela é muito mais do que seguir fielmente uma cartilha de hábitos saudáveis, e está muito longe de se associar a uma pilha de medicamentos, vitaminas e suplementos. Ser saudável envolve sentir-se confortável consigo mesmo e com o mundo em que se vive, enxergar sentido e significado em seus dias, sentir prazer em cuidar de si mesmo e daqueles que o rodeiam. Mudando aos poucos o ambiente (e as companhias) ao nosso redor, podemos trazer a saúde para nossas vidas tão naturalmente que nem perceberemos. É assim que seremos capazes de criar nossa própria Blue Zone. Seu Hélio que o diga.

*Belchior em “Velha roupa colorida

Ana Lucia Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Oncologia Clínica e pós-graduada em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da sua vida. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio. Seu livro mais recente, “De Mãos Dadas” propõe um novo conceito, Slow Oncology – a Oncologia sem Pressa, e é inspirado em uma das principais obras da Slow Medicine, “My mother Your Mother“, de Dennis McCullough, geriatra americano.

3 Comentários

  1. Parabéns por tocar neste ponto tão simples e profundo que é saber viver , Ana !! Não era pata ser tão difícil, mas sempre ha quem crie dificuldades para vender as facilidades… Sigamos resistência aos padrões de consumo 

  2. Muito bons seus textos. Bom ver médicos com quem possamos ter uma conexão. Belchior é uma lenda e como consegue com sua música nos tocar de forma incrível.

  3. Excelente!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Newsletter Slow Medicine

Receba nossos artigos, assinando nossa
newsletter semanal.
© Copyright SlowMedicine Brasil. todos os direitos reservados.