O pensamento lento e baseado em evidências

março 2, 2023
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Por José Alencar

“O raciocínio e a pressa não se dão bem.” (Sófocles)

No livro “Rápido e Devagar”, Daniel Kahneman, vencedor de um prêmio Nobel, apresenta a tese de que o nosso cérebro possui dois sistemas de pensamento que funcionam de maneira complementar: o sistema 1 e o sistema 2. O sistema 1 é rápido, intuitivo e automático, e é responsável por grande parte das nossas decisões cotidianas. Já o sistema 2 é mais lento, deliberativo, racional e lógico, e é acionado quando precisamos resolver problemas mais complexos (1). Kahneman defende que muitas vezes confiamos demasiadamente no sistema 1, que é suscetível a erros e vieses cognitivos, enquanto subestimamos o papel do sistema 2 na tomada de decisões importantes (Tabela 1). O sistema 2 (lento), com sua natureza mais racional, nos convida rotineiramente à abordagem sistemática dos fatos apresentados por pacientes e seus exames. A “abordagem sistemática de evidências apresentadas” é justamente o que chamamos de “ciência”.

            Está estabelecida, portanto, uma relação entre a atuação do sistema 2 de pensamento humano (lento), a literacia científica e, no escopo da atuação de profissionais de saúde, a Saúde Baseada em Evidências (SBE). 

Sistema 1 (rápido)Sistema 2 (lento)
Desenvolveu-se cedo na escala evolutivaDesenvolveu-se mais tardiamente na escala evolutiva
Sem palavrasComposto por debates verbais e transparentes
Processa informações rapidamenteProcessa informações lentamente
Baseado em intuição e reflexosBaseado na concentração e na reflexão
Tabela 1. Diferenças entre o sistema 1 e o sistema 2 de pensamento humano.

O que é e o que não é SBE

            A SBE é definida como “o uso consciente e judicioso da melhor evidência científica disponível a favor do paciente”. Ela pode, mas não deve, ser confundida com bioestatística, cálculos chatos, desumanização e “transformação de pacientes em meros números”. Tampouco deve ser confundida com “o uso inconsciente de diretrizes e tudo que está escrito em algum papel na forma de artigo científico”. Quando bem praticada, a SBE impõe um raciocínio lento, racional, consciente, que tenta o tempo inteiro se livrar dos vieses cognitivos e atalhos da mente do sistema 1 (rápido).  Na realidade, MBE é uma das ferramentas que nos permite praticar slow medicine.

Como a SBE e a Slow Medicine caminham lado a lado

A filosofia Slow Medicine humaniza a relação profissional-paciente quando propõe o retorno da essência da arte de cuidar como cultura entre profissionais de saúde, utilizando-se mais frequentemente da escuta e exame físico cuidadosos, de uma maior ênfase ao aspecto multidisciplinar do cuidado e de um uso mais racional e apropriado da tecnologia. 

A SBE nos ensina que para interpretar um exame, devemos, antes, conhecer o paciente a quem aplicamos o exame. Isso é verdade tanto para exames complementares como para exames físicos. O bom entendimento deste ensinamento faz o profissional entender que deve investir um bom tempo na escuta dos problemas do paciente. 

Em uma era em que a prática de cuidado em saúde se parece frequentemente com uma linha de produção industrial, a escuta e o exame do paciente são prejudicados. Em muitos prontos socorros, ambulatórios e consultórios, a relação profissional-paciente foi ceifada a uma limitada busca de queixas e prescrição de exames. Há diversas razões para isso: logística do serviço e maneira como foi organizado, prática de Medicina defensiva, entre outros. Devemos ser empáticos a todos esses argumentos, mas, ao mesmo tempo, devemos tomar uma atitude ativa para mudar esta realidade.

Para exemplificar as consequências trágicas que a desumanização da linha de produção em saúde pode trazer ao paciente, imagine um paciente de 80 anos que tem uma cirurgia marcada para o mês que vem. Este paciente tem uma consulta de 10 minutos com um cardiologista do seu convênio (que precisa bater a meta de 6 pacientes por hora). Trabalhando apenas com o sistema 1 de pensamento (rápido), o cardiologista faz o que sempre fez, com a mesma atenção com que passa para a segunda marcha do seu carro: pede uma prova funcional cardíaca para o pré-operatório (uma cintilografia miocárdica, no caso). 

O médico em questão tem alguns problemas: trabalha em um serviço que o explora e lhe tira a dignidade, mas é esse mesmo trabalho que põe o pão em sua mesa todos os meses; não tem tempo suficiente para praticar qualquer tipo de medicina mais humanizada ou baseada em evidências; tem medo das consequências de não pedir este exame e prefere “passar o problema para outro”.

Ele sabe que a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), em sua Diretriz de 2017 e na lista de recomendações à campanha Choosing Wisely, recomenda fazer teste funcional apenas em casos selecionados (Figuras 1 e 2) (2,3). 

Figura 1. Tomada de decisão sobre realização de prova funcional em pré-operatório de acordo com a Diretriz Brasileira da SBC (2017).

Figura 2. Lista de recomendações da SBC à campanha Choosing Wisely.

Em uma pesquisa com usuários do sistema Medicare, nos Estados Unidos, foi estimado que 56 mil pacientes (apenas deste sistema) passaram por uma prova funcional desnecessária entre os anos de 1996 e 2008 (4). No Brasil, esta prática também é muito comum. O fato é que a prova funcional não está indicada porque não tem capacidade de mudar os desfechos do paciente. Extrapolando a informação proveniente de outros cenários similares, a pesquisa de isquemia miocárdica e seu tratamento (com stents) são incapazes de reduzir a probabilidade de infarto (5). Ainda assim, a probabilidade de infarto em pós-operatórios, infelizmente, continua existindo. E o cardiologista em questão prefere ter a segurança de ser “o médico que fez o que podia, mas, apesar disso aconteceu um problema”. 

 O que o cardiologista não pesou, em sua consulta de 10 minutos, foi o risco de sangramento no peri-operatório, dado que, acompanhando um stent, vêm medicamentos antiagregantes e, às vezes, anticoagulantes. Também vem o risco da trombose de stent, que causa infarto agudo em seu portador. Outro risco é o de acidente vascular encefálico. Enfatizo: esses são riscos que não são acompanhados de benefício algum, caso alguém queira contrabalançar a questão.

Em um cenário onde a Slow Medicine tem aplicação, a consulta de pré-operatório seria diferente. O paciente e o médico teriam tempo suficiente para conversar e individualizar as estratégias que tomarão juntos. O médico encontraria, na anamnese e exame físico, argumentos suficientes para perceber que a tecnologia da prova funcional não será indicada, pois não possui os fundamentos que a SBE prerroga: as razões de verossimilhança positiva e negativa da prova funcional são insuficientes para responder à pergunta “será que meu paciente vai infartar no pós-operatório?”; e o tratamento que acompanha o exame positivo não possui evidência de eficácia suficiente para responder à pergunta “será que o benefício supera o risco deste tratamento?”. 

Com tempo suficiente, com humanização que todos merecemos, com o uso apurado do sistema 2 de pensamento (lento) e com conhecimento dos fundamentos da SBE, o profissional de saúde consegue, mesmo que a passos de tartaruga, trazer luz à realidade da saúde.

Caminhando lado a lado, a união entre essas duas filosofias de cuidado podem ser resumidas como: 

A prática da medicina em que se é cuidadoso em entrevistar (e examinar) pacientes e equilibrar benefícios e malefícios de intervenções diagnósticas e terapêuticas, lento para intervir quando os sintomas são indiferenciados, comprometido com a observação como uma importante estratégia diagnóstica e terapêutica, e cauteloso sobre a adoção de novos testes e terapias diagnósticas até que as evidências estabeleçam seu valor (6).

Referências bibliográficas

1.        Kahneman D. Thinking, fast and slow (1st pbk. ed.). New York: Farrar, Straus and Giroux. Cited on. 2013;15. 

2.        Gualandro DM, Yu PC, Caramelli B, Marques AC, Calderaro D, Fornari LS, et al. 3rd guideline for perioperative cardiovascular evaluation of the Brazilian society of cardiology. Arq Bras Cardiol. 2017 Sep 1;109(3):1–104. 

3.        Lista Choosing Wisely da Sociedade Brasileira de Cardiologia | Proqualis [Internet]. [cited 2023 Feb 25]. Available from: https://proqualis.fiocruz.br/listadeverificacao/lista-choosing-wisely-da-sociedade-brasileira-de-cardiologia

4.        Sheffield KM, McAdams PS, Benarroch-Gampel J, Goodwin JS, Boyd CA, Zhang D, et al. Overuse of preoperative cardiac stress testing in medicare patients undergoing elective noncardiac surgery. Ann Surg [Internet]. 2013 Jan 1 [cited 2023 Feb 25];257(1):73–80. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/pmid/22964739/?tool=EBI

5.        Maron DJ, Hochman JS, Reynolds HR, Bangalore S, O’Brien SM, Boden WE, et al. Initial Invasive or Conservative Strategy for Stable Coronary Disease. New England Journal of Medicine [Internet]. 2020 Mar 30;382(15):1395–407. Available from: https://doi.org/10.1056/NEJMoa1915922

6.        Updates in Slow Medicine – [Internet]. [cited 2023 Feb 25]. Available from: http://slowmedupdates.com/


José Alencar: Médico Cardiologista e Arritmologista. Doutorando em Bioética. Autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências. @josenalencar

Imagem: Melancolia, de Edvard Munch

1 comentário

  1. A respeito do seu artigo, Slow Medicine, acha que se aplica a qualquer nível de cuidado?
    Ontem mesmo conversava com um colega como dentro do CTI, hoje, valorizamos cada vez menos o exame físico do doente. Se há B3 ou B4, o que importa é um eco; utilizamos USG para quase tudo dentro do CTI com melhora evidente do desfecho dos pacientes, e, recentemente, comentávamos sobre um estudo (não sei o N), que indicava melhores desfechos em doentes “multimonitorizados” aos que tinham tido um bom exame físico realizado.
    Daí a minha dúvida. Acha que se aplica ao CTI?
    É uma dúvida genuína minha, eu sempre penso que se tivesse menos doentes e mais tempo pra pensar, melhoraria a minha conduta. Mas a medicina parece ir na direção contrária. 
    O que você acha?

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