Slow Medicine na prática: uma simples epicondilite

fevereiro 13, 2024
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7 min de leitura

Por André Islabão:

Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.

Machado de Assis – Uns Braços

Há poucos dias, um amigo me falava de sua decepção ao consultar um renomado ortopedista em sua cidade. Ele apresentava dor no cotovelo e resolveu ir direto consultar um especialista nas questões ortopédicas. Para sua surpresa, o médico mal olhou para ele, tocou de leve no local da dor, grunhiu algo irrelevante e preencheu uma receita rápida com garranchos quase incompreensíveis. Menos de dois minutos após adentrar o consultório médico cheio de expectativas, meu amigo saía de lá com um diagnóstico e, provavelmente, um tratamento. Mas saía também um tanto desiludido com o profissional e com a própria medicina.

Ele me contou essa história por saber de meus esforços como promotor de uma visão mais humanizada da medicina e dos cuidados de saúde e para saber o que poderia ter sido feito de maneira diferente. Um ponto importante a ser lembrado é que a atitude slow ou sem pressa da Slow Medicine é algo que deve ser compartilhado em alguma medida tanto pelos profissionais como pelos pacientes. É preciso haver uma cumplicidade entre os dois. De nada adianta que o médico tenha uma atitude slow se o paciente quiser ser atendido de forma rápida e realizar todos os exames e tratamentos possíveis, ainda que desnecessários ou irrelevantes para o seu caso específico. E o inverso é também verdadeiro.

A triste experiência do meu amigo pode servir para fazermos um exercício mental sobre o que se poderia ter feito de maneira diferente ou melhor. A primeira questão é o tempo: atender qualquer pessoa em menos de dois minutos não é apenas perigoso sob o ponto de vista profissional, mas é também um sinal evidente de desinteresse pela experiência de doença da pessoa que busca ajuda. Além disso, uma consulta adequada para alguém com epicondilite não demoraria muito mais do que 10 minutos, o que nos leva a pensar que a falta de tempo não tenha sido a causa principal de uma consulta tão frustrante.

Outro princípio slow relevante para o caso é o da individualização. É claro que, para um ortopedista, um quadro de epicondilite é um diagnóstico facílimo e trivial, mas o profissional deveria tentar entender o que aquela dor no cotovelo significava para o paciente. Neste caso, meu amigo estava bastante preocupado com a possibilidade de ter que parar de jogar tênis, esporte que pratica todas as semanas e que faz muito bem à sua saúde física e mental. Saber o que aquela experiência significa para ele é o primeiro passo para entendermos a importância da doença em sua vida. Quem procura um profissional de saúde, não o faz apenas para receber um rótulo diagnóstico e uma receita médica, mas também para esclarecer diversas dúvidas e ser adequadamente tranquilizado.

Os princípios da autonomia, do autocuidado e da prevenção seriam abordados explicando ao paciente o que ele poderia realizar por conta própria para tratar o quadro atual de epicondilite e para evitar novos quadros semelhantes. Existe benefício em aplicar gelo no cotovelo neste momento? E quanto a pomadas anti-inflamatórias? O uso de algum tipo de órtese no cotovelo poderia reduzir as chances de desenvolver uma nova epicondilite? Existe alguma forma mais adequada de empunhar a raquete de tênis para reduzir o risco de o problema voltar? Todas essas são questões que poderiam ser abordadas em uma consulta por epicondilite. E isso não demoraria mais do que cinco minutos.

A questão do uso parcimonioso das tecnologias é bastante fácil de aplicar no caso descrito. A epicondilite costuma ser um diagnóstico clínico feito a partir de uma anamnese simples e de um exame físico focado no membro acometido, em geral não havendo necessidade de se realizar qualquer exame de imagem. Já o princípio da qualidade de vida estaria neste caso diretamente vinculado ao reconhecimento por parte do médico de que o hábito de jogar tênis é sumamente importante para este meu amigo. Assim, também sua qualidade de vida depende de uma boa recuperação, a qual depende, por sua vez, não apenas de um diagnóstico e tratamento corretos, mas de uma conduta médica correta em seu sentido mais amplo.

O princípio slow que fala da paixão e da compaixão é um dos mais importantes não apenas na Slow Medicine, mas em qualquer forma de se fazer uma boa medicina. Segundo este princípio, o médico deve ser capaz não apenas de se colocar no lugar de seu paciente, mas também de realizar todo esforço possível para reduzir seu sofrimento, por mais que o diagnóstico pareça banal aos olhos do profissional. E esse grau de compaixão só é possível quando somos movidos pela paixão por ajudar os outros. É evidente que somos profissionais e precisamos ser adequadamente recompensados pelos nossos serviços, mas nada se compara à satisfação de um paciente curado e agradecido.

Enfim, esta reflexão visa mostrar que a Slow Medicine pode ser praticada em qualquer ambiente de cuidados de saúde, mesmo naqueles de cuidados agudos e nos casos que parecem tão triviais que corremos o risco de banalizar sua importância para o paciente. Embora o ensino médico formal dê uma importância desproporcional ao diagnóstico e tratamento das doenças, nunca é demais lembrar que não tratamos doenças, mas sim as pessoas e suas experiências de doença e de vida. E essas, diferentemente das categorias diagnósticas catalogadas na CID, têm relevância única e manifestações clínicas praticamente infinitas. Precisamos lembrar que o tal “cotovelo de tenista” não se refere a um atleta imaginário que deu nome à doença, mas sim àquele paciente aflito que está sentado à nossa frente e que espera de nós um mínimo de comprometimento.

André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, em consultório privado. Além disso, é escritor e tradutor – é sua a obra “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine. Recentemente publicou o livro “O risco de cair é voar“. André é também autor do blog andreislabao.com.br

*Imagem captada do site Brainly .

2 Comentários

  1. Adorei o texto. No meu consultório chegam vários casos de epicondilite , sendo que vários ao realizar um BOM exame físico e uma BOA anamnese têm dignosticos difericiais de tendinite. 10 min de consulta não são suficientes, isso é slow?

  2. Muito bom esse texto!!!

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